domingo, 27 de setembro de 2020

PROSA - Excerto de Faces de Maya

Acho-me em manhãs cinzentas porque já me perdi em noites luxuriantes de mil prazeres onde os devaneios se renovam em vazias certezas. Vejo-me insinuando nas curvas da vida porque já me desabei em retas infinitas e o meu olhar perdeu-se onde outros se aventuraram, com sucesso. Sinto a memória da dor porque a vida já me infligiu as marcas da ilusão e das quiméricas aventuras de outrora, da utopia de acordar pela manhã sonhos absolutos por inventar. Mas, fincado com os pés na fraga imponente, ouso olhar o destino e enfrentar a natureza bruta das incertezas e das angústias que me acompanham na vida. Sinto no olhar a convicção da alma e a determinação das minhas vontades. Ouso ir mais além como se enfrentasse o Destino nas margens plácidas das manhãs cinzentas que hei de fazer colorir na aquarela dos meus sonhos, na paleta dos meus desejos, na flâmula das emoções.

 

Já fui brisa por entre tempestades medonhas, marola ausente na iminência da vaga oceânica; já fui a gota de água fluindo vazia na corrente intrépida da cachoeira ou a gota de chuva em plena monção. Mas acima de tudo, fui a vontade que precedeu o sonho, a alvorada que criou o dia, fui a letra que se fez poema e houve sempre em mim a audácia imberbe que a vida amadureceu, com o fulgor pleno de conhecer a vitória muito além dos alvores da desilusão. Assim caminho na vida e no pensamento na constância dos meus sonhos.

 

Quando caminho, desinvento-me de mim. Na berma da estrada por onde o mundo passa, na esteira da vida que prossegue e dos rumos que ela tece, quando caminho desapego-me de mim e passo a interagir com o mundo ao meu redor, com a realidade que me acompanha, passo a passo.

 

E porque ando devagar, tenho tempo para refletir sobre o que realmente é importante para mim, sem a pressa da vida que me cega a alma. Porque ando a pé, carrego somente o que é necessário e vital, podendo assim discernir o que realmente eu preciso para caminhar na vida, descartando o que é desnecessário ou supérfluo.


MARIANO MENDONÇA LOPES

[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]