sábado, 12 de dezembro de 2020

Poesia - Travessias

 Travessias

 

O silêncio de uma porta ausente

É o meu acesso à escuridão

De uma ombreira que não se sente,

De uma sombra que vaga sem imensidão.

 

A sombra esvai-se no chão, perdida,

E o meu olhar não tem contemplação.

Fica ausente à espera de vida,

Erra como todos, sem consolação.

 

A frieza do quarto fechado

É a agonia de viver dentro de mim;

Na ombreira da vida, tudo é passado,

Na sombra sem porta, tudo é fim.

 

A ambivalência que me trouxe aqui

É uma dualidade sem sentido,

O sentido que em mim jamais senti

Porque a minha dor era por ter vivido.

 

Na ausência do mundo que conheci

Só a sombra alcançou o porvir,

Mão aberta a que nunca estendi,

Olhar incerto pelo que há de vir.

 

Perco o presente sem ter o futuro,

A porta que se abre nunca existiu.

Um passado sombrio e inseguro,

Uma sombra fugaz que desistiu.

 

É uma porta que se fecha para a vida,

É uma ombreira vã, sem coragem.

Numa manhã incerta, sem despedida,

Numa manhã deserta, sem paisagem.

 

O silêncio da porta cruzou eras,

A sombra desvaneceu-se em fantasias,

Num tempo que ficou ausente, deveras,

Na lembrança apagada de outras travessias.

 

MARIANO MENDONÇA LOPES

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Poesia - Vênus

 Vênus

 

Inventei-te numa praia despida

E os teus sentimentos

Cobriram a tua alma.

 

Foste um sopro de imaginação

E sobre estes seixos encantados

Caminhaste as tuas emoções.

 

Neste marulhar ausente,

Morreram anônimas

As ondas do teu ser;

Nessa orla de encanto,

Tu foste a Vênus

Ressurgindo da água,

Brotando no infinito.

 

E foi assim que aprendi a te amar:

Quando a tua alma foi a sereia

Que cativou o meu coração.

 

MARIANO MENDONÇA LOPES

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Prosa - Dia das Crianças, Dia do Professor

 Dia das Crianças, Dia do Professor

 

Um dia, segurei a tua mão para te ensinar a andar de bicicleta e patins; um dia, segurei a tua mão para te ensinar a segurar o garfo, a caneta ou a pipa; um dia, ensinei-te o nome dos planetas, dos animais e as letras do alfabeto. Aprendi a ser pai quando, um dia, te ensinei todas estas coisas; um dia, tu me ensinaste que o amor entre pai e filha é eterno. E, juntos, descobrimos mais uma estrela no céu porque seremos eternamente crianças, ensinando e aprendendo neste Universo. Quando eu for velho, tu segurarás a minha mão e me ensinarás que valeu a pena viver, só para te ver feliz.


MARIANO MENDONÇA LOPES

sábado, 3 de outubro de 2020

PROSA - Excerto de Faces de Maya

 

Há em cada olhar essa magia de viajar até ao centro da alma, revelando emoções, desabrochando paixões, encurtando mensagens que se alongam nos segredos, nos meandros submersos da mente. Em cada olhar, há esse despontar que apenas se torna viçoso àquele que sabiamente interpreta as emoções, as paixões e os segredos, que decifra mensagens nos subterfúgios da mente. Só quem sabe contemplar verdadeiramente o mundo tem essa capacidade de olhar, de entender o que há no outro sem que impere forçosamente o discurso das palavras, ferindo a autonomia da alma. As emoções são discursos vigorosos e um olhar vazio pode traduzir mais pensamentos do que todas as bibliotecas no mundo. Julgar um olhar, um pensamento, uma emoção é uma forma de colonialismo, de imperializar os seus sentimentos como se balizas fossem, em detrimento da visão de outros. Só quem já sofreu sabe interpretar um olhar e o que nele se contém, porque o olhar só se revela sorrateiramente, difuso, sem margem a definições nem azo a críticas; olhar é também uma forma de amar. Amar é apreender a imagem que há no outro, sem ferir o seu reflexo.


MARIANO MENDONÇA LOPES

[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

domingo, 27 de setembro de 2020

PROSA - Excerto de Faces de Maya

Acho-me em manhãs cinzentas porque já me perdi em noites luxuriantes de mil prazeres onde os devaneios se renovam em vazias certezas. Vejo-me insinuando nas curvas da vida porque já me desabei em retas infinitas e o meu olhar perdeu-se onde outros se aventuraram, com sucesso. Sinto a memória da dor porque a vida já me infligiu as marcas da ilusão e das quiméricas aventuras de outrora, da utopia de acordar pela manhã sonhos absolutos por inventar. Mas, fincado com os pés na fraga imponente, ouso olhar o destino e enfrentar a natureza bruta das incertezas e das angústias que me acompanham na vida. Sinto no olhar a convicção da alma e a determinação das minhas vontades. Ouso ir mais além como se enfrentasse o Destino nas margens plácidas das manhãs cinzentas que hei de fazer colorir na aquarela dos meus sonhos, na paleta dos meus desejos, na flâmula das emoções.

 

Já fui brisa por entre tempestades medonhas, marola ausente na iminência da vaga oceânica; já fui a gota de água fluindo vazia na corrente intrépida da cachoeira ou a gota de chuva em plena monção. Mas acima de tudo, fui a vontade que precedeu o sonho, a alvorada que criou o dia, fui a letra que se fez poema e houve sempre em mim a audácia imberbe que a vida amadureceu, com o fulgor pleno de conhecer a vitória muito além dos alvores da desilusão. Assim caminho na vida e no pensamento na constância dos meus sonhos.

 

Quando caminho, desinvento-me de mim. Na berma da estrada por onde o mundo passa, na esteira da vida que prossegue e dos rumos que ela tece, quando caminho desapego-me de mim e passo a interagir com o mundo ao meu redor, com a realidade que me acompanha, passo a passo.

 

E porque ando devagar, tenho tempo para refletir sobre o que realmente é importante para mim, sem a pressa da vida que me cega a alma. Porque ando a pé, carrego somente o que é necessário e vital, podendo assim discernir o que realmente eu preciso para caminhar na vida, descartando o que é desnecessário ou supérfluo.


MARIANO MENDONÇA LOPES

[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

domingo, 12 de abril de 2020

Crônica - Crônica de um mundo ensandecido, ou a vã glória de existir...

 
Vivo nestes dias um torpor sem igual, como se a Arca de Noé tivesse encalhado num qualquer mundo sumido da Humanidade. Vivo tempos sombrios, quase surreais, numa sucessão de fatos inéditos, desde os idos de fevereiro de 2020. Países com fronteiras fechadas, economias praticamente paralisadas, um leve caos social como nunca se viu em tempos recentes, provavelmente nem mesmo em tempo de guerra, um cenário que raia o histerismo e que ainda nem sequer atingiu o seu pico mais fatídico. O que será dessas pessoas em Abril e Maio quando se exaurirem os seus recursos econômicos, o que será da sociedade?...
 
Adiada a Eurocopa, vários torneios desportivos, até mesmo as Olimpíadas, paralisada a produção de muitas empresas, como ficará o nosso futuro? O que nos espera lá mais à frente?... Sobreviverei eu a tamanha agrura, nesta ansiedade crescente pela luta básica de comprar e estocar alimentos, pagar serviços básicos e indispensáveis?...
 
Sinto-me confuso e atordoado, mal refeito do ambiente soturno em que vivemos. Um planeta virtualmente parado, de quarentena, confinado em casa e aguardando o lento evoluir de uma pandemia cujos efeitos econômicos e sociais poucas vezes foram tão acentuados na História como agora, a par da Peste Negra, da Peste Bubônica ou da Gripe Espanhola, todas elas na Europa. Mas esta é uma pandemia universal, uma guerra mundial insidiosa que se alastra em todos nós. Uma crise agoniante de quase pavor, ante o descalabro financeiro imposto às empresas e corporações, na iminência de um colapso mundial, enquanto governos lutam e se e esforçam para trazer alguma segurança psicológica e emocional às sociedades. Enquanto isso, bancos lucram, avarentos e semíticos, com a desgraça alheia, oportunistas lançam mão de esquemas para ludibriar os incautos; famílias permeiam as suas angústias com as suas carências. Temem-se saques, pilhagens e roubos com o agravamento da situação, com a indefinição das atitudes. É amargo o sabor da vida recolhida em quarentena, é a amargura sofrida do canário enclausurado na gaiola ou do leão solitário num qualquer zoológico suburbano, longe das savanas onde o vento selvagem sopra intrépido.
 
Mas o céu ainda é azul quando se recorta no perfil da cidade com edifícios comerciais vazios, abandonados na quarentena; o sol ainda brilha forte em ruas desertas, praças desertas, cidades desertas. O vento ainda sopra afoito com o seu magnânimo fluir das emoções em praias abandonadas à sorte dos elementos naturais. A própria Natureza se encarregou de ocupar e preencher os espaços que a mão humana momentaneamente abandonou. Só o silêncio ecoa, impávido e sereno, sobre as extensas superfícies de países e territórios reclusos de um vírus, de um medo, de um pânico. No campo, ainda se ouvem as máquinas agrícolas laborando incessantemente para obter a produção agrícola que vai alimentar uma Humanidade presa em casa e que apenas pode assistir, impotente, ao lento desenrolar dos dias e das semanas, enquanto se joga pesarosamente no sofá ou se articula freneticamente em frente ao computador e nos celulares, nas redes sociais.
 
O ano de 2020 mal começou mas já assistimos a uma quase guerra entre o Irã e os EUA e ao ambiente belicoso do conflito comercial entre os EUA e a China, com a troca de acusações mútuas sobre a responsabilidade de um e de outro na propagação do corona vírus. Assistimos agora a um planeta anestesiado por este torpor generalizado, por esta estupefacção social, por esta ansiedade latente sobre o que fazer e como fazer. Contam-se os mortos, sobram os vivos, desenham-se cenários e perspectivas; para o futuro, para a História, ficará o episódio soturno de uma Humanidade perdida que aos poucos se vai achando no caos social e sociológico. Quando a noite cai, vão-se acendendo as luzes de novos conhecimentos, de esperança em novas vacinas, e a Humanidade se reergue. Quando a noite cai, acendem-se as luzes na cidade, ilustrando uma vida oculta e anônima, atrás das janelas e das fachadas dos edifícios. Mas, por ora, só a Lua consegue iluminar placidamente as ruas desertas, praças desertas, cidades desertas. Por ora, o tempo ainda é vazio e a História incerta.

 

Mariano Mendonça Lopes

domingo, 1 de março de 2020

Poema - Margens Ausentes

                                                     Margens Ausentes

 
Saí do sossego das tuas margens,
Mas não sei alcançar o oceano;
Não ouso arriscar-me em viagens,
Não saberia lidar com tal engano.

 
A nossa vida era um remanso
Que deu lugar a águas agitadas,
Era uma correnteza de que não me canso
Porque havia sempre águas animadas.

 
Havia nas margens do nosso rio
Jardins viçosos e almas floridas;
Margens que a vida destruiu,
Deixando apenas arenosas despedidas.
 
 
Possa esse rio alcançar o mar,
Levando com ele o que não soubemos amar.

 
MARIANO MENDONÇA LOPES

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Poema - Psicografia do Futuro

 
Psicografia do Futuro
 
O grito do condenado jogado no chão,
O vazio imperceptível da dor,
A incerteza pérfida de existir,
Tudo isso agoniza a solidão,
Deixa-me num estado de torpor
Esperando sempre a hora de cair.
 
Não sei mais o que de mim sentir
Se é calado que permaneço atento
Quando a morte dilacera a alma
De tudo o que há por consumir
Até ao derradeiro momento
Em que morro, e tudo se acalma.
 
É uma psicografia sem emoção
Como se em determinada altura
A minha alma partisse aos quatro ventos
Na bonança trazida pela ilusão
De ter vivido na graça e na candura
Perpétuos vícios sem sentimentos.
 
Talvez um dia me ache na suposição
Da letargia de ter existido
Numa qualquer berma de estrada,
Uma vida já em decomposição,
Ideando um rumo sem sentido,
No caos que ficou uma vida inacabada.
 
Sinto-me condenado sem julgamento
Eternizando a dor dilacerante,
Perpetuando o destino de Sísifo.
Só a morte reina no pensamento,
Penso nela a cada instante,
Sem temor nem nenhum artifício.
 
Queria poder ser anti-social;
Odeio o mundo que me observa,
Sempre vendo como ajo e me sinto,
Achando que assim sou anormal
Ou que me porto de maneira diversa,
Ou que acham que apenas minto.
 
Não; o grito do corvo estridente
É um aviso do que vem.
Sonhar aplaca a minha dor
Mas é flagelo sempre presente,
Uma dor que ninguém tem,
Uma vida vazia e sem amor.
 
Erguem-se soturnos e derradeiros
Os espectros do meu passado
Que retornam a mim, amiúde;
Sonhos fugazes, mas verdadeiros,
Falam-me do que me deixou marcado
De um tempo agreste e rude.
 
O grito vazio do condenado
Já foi sepultado em vala comum
Até ficar esquecido, sem glória.
Tudo o mais ficou oculto, ignorado,
Sem ter destino nenhum,
Sem se aventurar na eterna memória.

 
MARIANO MENDONÇA LOPES

Prosa - Excerto de As Faces de Maya


Os outros buscam o poder, a fama e a glória, perseguem a felicidade e o dinheiro; eu busco a mim mesmo. Ávidos dos desejos materiais que lhes instrumentalizem a falsa percepção de felicidade, perdem-se no emaranhado ilusório que se evade das vidas e se eclipsa no tempo, e erram na vida em busca de fardos vazios, de volumes ocos, de uma coisa alguma sem matéria. Eu busco o conhecimento que se insinua nas veredas sinuosas da vida, que se entremeia nos edifícios singelos que a História plantou, que se acumulou nos diálogos perdidos das civilizações e em toda a filosofia dos sentidos. Busco conhecer a mim mesmo, do quanto eu fui e do quanto eu sou para vir a ser um outro que renasce em mim todos os dias, alumiado por esse archote do conhecimento que me vai alumiando o caminho. E o caminho é por aonde vou, naquilo que vou, na forma como vou. O caminho nasce quando eu ando, porque só a Via é eterna e é o Universo que me elucida sobre o melhor trajeto a seguir na vida, bastando apenas ser arguto e entender os seus sinais. Vivo, por isso aprendo a ser melhor; conheço, por isso aprendo a errar menos; medito; por isso aprendo a refletir sobre os mistérios do Universo.

 

Ando na chuva fria porque já caminhei no sol ardente e me delicio com os alvores do dia porque já sofri com a solidão da noite. Percorro a vida porque já enfrentei a morte e na dor da ausência há o amargo trevo da saudade de um tempo que não volta, de uma pessoa que não mais verei, de uma memória que passou e que agora se aloja no meu coração e vai descendo devagar e insinuosamente até alcançar a alma onde deveras se esconde. Sou um guardador de inúmeras e infindáveis memórias do mundo e que agora, porém, se recolhem à solidão de um quarto, de um mero aposento de vida de quatro paredes onde ainda viceja a felicidade que é viver, que é existir. Vejo o quarto onde moro e os objetos que nele permanecem, indiferentes à minha vontade. Mas estariam eles aqui se neles eu não pensasse, se deles não cogitasse a sua existência?..  Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença, deixei pedaços de mim espalhados por esse mundo, por pessoas que mal conheci e outras que, de tanto bem conhecer, parece que se apagaram das suas próprias vidas e apenas deixaram uma luz em mim, como uma estrela fulgurante piscando no céu a luz derradeira perdida há milhões de anos. “Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença...”, parece até que estou a fazer juras de amor no altar da vida, diante do sacerdote do Tempo ao desposar a minha vida e tudo o que ela me traz, como a noiva arrebatadora por quem todo o homem se apaixona.

 

O meu pensamento é caótico, tempestuoso e livre, transversal à evolução das coisas, como se buscasse ser a contramão de todos os sentidos. Percorro os meandros que a vida me coloca em labirínticos desafios, em busca de um sentido que dê a toda essa expressão catártica que irrompe abruptamente na minha visão, que me violenta sensorialmente para que eu consiga enxergar o que de mim se aparta, para que eu consiga perceber o que em mim se oculta, para que eu consiga, enfim, crescer exponencialmente na minha consciência, e na consciência de todas as coisas. Verifico que há tanto por aprender quanto na vida há por amar todas as coisas porque na expressão do amor se sente deveras a expressão do saber e do conhecer, como se um e outro andassem de mãos juntas em tormentos e sobressaltos para enfim se acharem num qualquer remanso da vida, celebrando a vida e o que ela nos traz na augusta sabedoria do prazer sensorial e, porque não, carnal.

MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra, "As Faces de Maya"]

Poema - Deixo nessa alma machucada

Deixo nessa alma machucada
O gosto ardente da saudade,
Desejo em vão pela liberdade
Que na vida me foi sempre negada.
 

Possa um dia ser felicidade
O que por ora se acha fantasia,
O que, por gosto ou magia,
Se enleva nas veredas da verdade.
 
Deixo no Universo os meus cânticos
De uma profunda devoção
Pelos momentos na vida passados;
 
Dos singelos aos mais românticos,
Dos olhares hirtos aos com emoção,
Vai um pouco de saudade em todos os atos.
 
 
MARIANO MENDONÇA LOPES

Poema - A dor é um amor ao contrário


A dor é um amor ao contrário;
No sentido que a alma sente,
Quando tudo se faz ausente,
A dor é um sentimento primário.

 
Para suprir tamanho sofrimento,
Forçoso será que se esqueça,
Antes que em nós tudo se esmoreça,
O que dá à dor o seu merecimento.

 
Talvez melhor que a singela saudade,
Será partir para não mais voltar
Pela emoção que se deixou fugir.
Antes que se faça tarde
E sejamos obrigados a suportar
A sentença final que nos coube cumprir.

 
MARIANO MENDONÇA LOPES

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Prosa

Só conhecemos bem as nossas forças quando são elas tudo o que nos resta. Só aprendemos a sentir quando a dor passou a ser a nossa referência e, na amargura de viver, sofrer passou a ser o preço a pagar pela inconsequência de existir. Só conhecemos bem o horizonte da dor quando tudo o mais deixou de fazer sentido e o vazio da nossa vida nos fez sair da zona de conforto para nos encontrar em permanente desafio com a consciência. Do passado ficou apenas a amarga recordação que a leviandade deixou, por uma ausência de compromisso com o universo e conosco próprios, desconhecendo por completo ou enxergando por uma visão míope que as consequências atuam em função das ações ou omissões, de que tudo o que nos acontece hoje ou amanhã é indubitável e inexoravelmente o resultado das nossas ações no ontem, e que o âmago para o percurso de dor que vivenciamos e partilhamos nessa nossa existência tem que ser visto em função e como resultado de alguma existência num plano anterior. O Universo não é nem mais justo nem mais injusto conosco do que é com os outros, apenas exerce a influência que nós próprios geramos com as nossas ações ou a falta delas.
 
Foi interrompido nos seus pensamentos pela voz do comissário que instruía os passageiros para o voo prestes a iniciar-se. Iria ser uma longa noite e era necessário que todos se acomodassem. Para Ernesto, porém, havia um só pensamento, que ele não sabia esconder do seu coração: Elsa.
 
Armênio, porém, não havia seguido a recomendação e olhou para trás antes de subir a plataforma de embarque. Todos se haviam retirado, menos o velho Köller que segurava a mão de Elsa, mantendo-se impávido, fitando demoradamente o Zeppelin, certo de encontrar o olhar de Armênio e de Ernesto.

MARIANO MENDONÇA LOPES

[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

domingo, 19 de janeiro de 2020

Poema - Corações de Safira

Corações de Safira
 
A verdade é sempre o caminho
Mais curto entre duas pessoas;
Mesmo que eivada de sinceridade
Acutilante, despida de afeto,
De um soturno ar de esperança
Que não consome a chama do amor,
A verdade prevalece nas sombras
Por onde caminham,
Em perniciosa felicidade alheia,
Duas pessoas que se confiam
E a quem confiam as suas almas
Em jubiloso encanto derradeiro
De uma confiança sem fim
Que invade as suas almas;
Mesmo que à sua volta, imperturbada,
A tempestade se abata em suas vidas,
A verdade será sempre trilho de pedras
Em que fincou impotentes as personagens.
 

Mariano Mendonça Lopes