domingo, 28 de agosto de 2022

Prosa - As Faces de Maya

Os frouxos procuram a justiça; os fortes procuram a verdade. Os frouxos se erguem nas certezas; os fortes se amparam nas dúvidas. Uns e outros jamais terão o conhecimento pleno das coisas porque não é dado ao nosso juízo tomar o pleno conhecimento das coisas; o conhecimento que temos das coisas é sempre um algo emprestado num viés sempre parcial, porque não há como vislumbrar tudo em tempo oportuno. Esse é o Véu de Maya que nos enche de ilusão. Por isso, viajar nos traz o conforto da alma pela visão e o conhecimento das coisas belas, das coisas que nem são tão belas, mas são necessárias. E também há as coisas que, não sendo tão necessárias, não deixam de ser importantes, dada a sua faculdade de nos fazerem pensar e de nos fazerem sentir, porque as sensações também têm a sua atividade cognitiva que o cérebro compila. E para as coisas belas, necessárias ou importantes há sempre a estética que nos faz maravilhar pelo seu conjunto e por cada detalhe que o compõe. Na harmonia das coisas, na harmonia do mundo e na harmonia do universo, regem-se todas as coisas pelo sentido da estética que lhes dá um propósito e um motivo. Não sendo elas necessárias, são importantes; não sendo importantes, são belas, como expressão da arte. A arte é tudo o que não é expressamente útil, mas que importa ao indivíduo, que lhe traz a sensação de existir, o âmago do pertencimento a esse mundo do qual ele faz parte e no qual se inserem todas as suas sensações, todas as suas vontades, todos os seus conhecimentos. Porque o conhecimento é o que nos faz fortes, o que nos impele a ir mais além, além do que já sabemos e já podemos, além daquilo que nos impingem ou nos empurram, sob a vetusta impressão de justiça. Mas nós não procuramos a justiça; procuramos a verdade, que é aquilo que se adquire quando se viaja, para fora das nossas almas, em busca do outro, na consciência plena do ciclo repetido do Eterno Retorno.

 

 MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto de As Faces de Maya, publicado em 2021]

Prosa - Impressões do Mar

O silêncio da noite devolve-me a nostalgia do sonhar, só a música me impede de voar... Solto a imaginação e percorro o universo; gosto de sonhar, fingir viver uma existência despreocupada, como se nos meus ombros não se depositassem os pesos hediondos de uma vida contrariada. Mas eu gosto mesmo é de escrever, beber e ouvir música, enquanto sonho, enquanto contemplo universos que estão para além das minhas possibilidades, acessíveis apenas à imaginação infinita. Escrevo despreocupadamente porque sei que ser algum jamais os lerá, não fora assim e até na escrita venceria a minha timidez. Mas não, aqui na escrita não; o meu confessionário de ideias, o meu carpir feliz de vivências extraordinárias. Ah, feliz o homem que escreve para seu bel-prazer pois alcança a imensidão do espaço, feliz o homem que sonha, pois dele é o infinito que está escrito nos céus em letras estreladas de magnitudes impensáveis. Impossível descrever aquela sensação que me liberta quando escrevo; como um espasmo caleidoscópico, quando acabo de escrever, sinto-me simultaneamente vazio e pleno. Já descarreguei aquela frémula excitação que me dominava, realizando o desejo, sinto-me realizado, sinto-me plenamente utilizado, aquela sensação feliz do trabalho cumprido quando me deito e tenho a consciência tranquila no aconchego da almofada porque sei que fiz um bem à minha pessoa. Ler transporta igualmente essa maravilhosa sensação do fecundo trabalho mental, porquanto semeia a ideia que há de depois lavrar na prosa ou na poesia. Mas ler não liberta tanto quanto o escrever, não compreende aquela sensação selvática do escrever, aquela experiência catártica que mata todas as indefinições, todos os impulsos eletrizantes que me dominam e inibem, que me violentam. Quando escrevo, é como se morresse e, nas entranhas do meu cadáver, fecundasse o meu próximo eu numa experiência eterna de múltiplas vivências que se vão sucedendo. Como a cobra que se regenera, também eu vou alternadamente combinando essa mutação de perspectivas, de ideias, de conhecimentos e de sentimentos. Esvai-se todo o possessivo constrangimento de ódio, de raiva, da violência contida no trato com as pessoas e em que não posso descarregar nelas todas essas sensações, conquanto amiúde o desejasse; por isso, não há noite mais tranquila do que aquela em que escrevo, acompanhada no espírito pela música, acompanhado no corpo por uma bebida e, na satisfação destas volúpias, ensaiar o desfecho noturno na calma repousante de uma boa leitura. Escrever devolve-me as impressões de sonhar...


MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto de Impressões do Mar, publicado em 2014]

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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Poema - Margens dum Mar Menor

O meu imenso oceano

É um rio com margens estreitas

Como as pulsações dum mesmo povo.

 

O meu oceano é um rio lusitano

Em cujas margens se fala português,

Feito de águas passadas, corrente de futuro.

 

O meu oceano é um mar de História,

Navega-se impressões oceânicas de dor,

Mergulha-se maresias de compreensão,

 

Parece que é tudo ondas de sabedoria,

Riachos de acontecimentos já muito vividos

Em profundezas abissais de mútuas desconfianças.

 

O meu oceano é um mar interior,

Inteiramente fechado pela alegria do povo

Que nele circula com o saber e a devoção

 

De transportar História, riquezas, vida,

Transportando contudo a incompreensão

De quem não soube pesar as caravelas,

 

De quem não soube contar os escravos

Ou as largas pepitas de ouro

Ou as madeiras exóticas da floresta

 

Ou ainda a cultura e os monumentos,

Os homens, as mulheres e as crianças

Que são a água e são a vida deste rio.

 

O meu oceano é um rio imenso de vida,

Soberano nas decisões, no presente e no futuro.

Mas continua a ser o mesmo rio

 

Em cujas margens se inventou uma nova era,

Em cujas águas se navegou o destino,

Em cujo sal se chorou o mundo.


MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto do livro Peregrinações]

sábado, 20 de agosto de 2022

Romance - As Faces de Maya

Ando na chuva fria porque já caminhei no sol ardente e me delicio com os alvores do dia porque já sofri com a solidão da noite. Percorro a vida porque já enfrentei a morte e na dor da ausência há o amargo trevo da saudade de um tempo que não volta, de uma pessoa que não mais verei, de uma memória que passou e que agora se aloja no meu coração e vai descendo devagar e insinuosamente até alcançar a alma onde deveras se esconde. A inevitabilidade da morte é que me traz o amor à vida e o que ela me dá. Sou um guardador de inúmeras e infindáveis memórias do mundo e que agora, porém, se recolhem à solidão de um quarto, de um mero aposento de vida de quatro paredes onde ainda viceja a felicidade que é viver, que é existir. Vejo o quarto onde moro e os objetos que nele permanecem, indiferentes à minha vontade. Mas estariam eles aqui se neles eu não pensasse, se deles não cogitasse a sua existência?... Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença, deixei pedaços de mim espalhados por esse mundo, por pessoas que mal conheci e outras que, de tanto bem conhecer, parece que se apagaram das suas próprias vidas e apenas deixaram uma luz em mim, como uma estrela fulgurante piscando no céu a luz derradeira perdida há milhões de anos. “Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença...”, parece até que estou a fazer juras de amor no altar da vida, diante do sacerdote do Tempo ao desposar a minha vida e tudo o que ela me traz, como a noiva arrebatadora por quem todo o homem se apaixona.

Prefiro não ter amigos; tê-los e mantê-los seria um desperdício de energia e uma pura perda de tempo. Ter amigos pressupõe ter a sua posse e propriedade, o que seria escravizá-los e nesse caso não seriam amigos, mas cativos da minha alma, escravos das minhas vontades, alheios a qualquer forma de crítica ou livre arbítrio. Prefiro ter como amigos o mar que banha as minhas ilusões, o vento que espalha as minhas convicções ou o tempo que afaga os meus devaneios lúdicos. O meu pensamento é caótico, tempestuoso e livre, transversal à evolução das coisas, como se buscasse ser a contramão de todos os sentidos. Percorro os meandros que a vida me coloca em labirínticos desafios, em busca de um algo que dê sentido a toda essa expressão catártica que irrompe abruptamente na minha visão, que me violenta sensorialmente para que eu consiga enxergar o que de mim se aparta, para que eu consiga perceber o que em mim se oculta, para que eu consiga, enfim, crescer exponencialmente na minha consciência, e na consciência de todas as coisas. Verifico que há tanto por aprender quanto na vida há por amar todas as coisas porque na expressão do amor se sente deveras a expressão do saber e do conhecer, como se um e outro andassem de mãos juntas em tormentos e sobressaltos para enfim se acharem num qualquer remanso da vida, celebrando a vida e o que ela nos traz na augusta sabedoria do prazer sensorial e, porque não, carnal.

MARIANO MENDONÇA LOPES (excertos do romance As Faces de Maya)