Os frouxos procuram a justiça; os fortes procuram a verdade. Os frouxos se erguem nas certezas; os fortes se amparam nas dúvidas. Uns e outros jamais terão o conhecimento pleno das coisas porque não é dado ao nosso juízo tomar o pleno conhecimento das coisas; o conhecimento que temos das coisas é sempre um algo emprestado num viés sempre parcial, porque não há como vislumbrar tudo em tempo oportuno. Esse é o Véu de Maya que nos enche de ilusão. Por isso, viajar nos traz o conforto da alma pela visão e o conhecimento das coisas belas, das coisas que nem são tão belas, mas são necessárias. E também há as coisas que, não sendo tão necessárias, não deixam de ser importantes, dada a sua faculdade de nos fazerem pensar e de nos fazerem sentir, porque as sensações também têm a sua atividade cognitiva que o cérebro compila. E para as coisas belas, necessárias ou importantes há sempre a estética que nos faz maravilhar pelo seu conjunto e por cada detalhe que o compõe. Na harmonia das coisas, na harmonia do mundo e na harmonia do universo, regem-se todas as coisas pelo sentido da estética que lhes dá um propósito e um motivo. Não sendo elas necessárias, são importantes; não sendo importantes, são belas, como expressão da arte. A arte é tudo o que não é expressamente útil, mas que importa ao indivíduo, que lhe traz a sensação de existir, o âmago do pertencimento a esse mundo do qual ele faz parte e no qual se inserem todas as suas sensações, todas as suas vontades, todos os seus conhecimentos. Porque o conhecimento é o que nos faz fortes, o que nos impele a ir mais além, além do que já sabemos e já podemos, além daquilo que nos impingem ou nos empurram, sob a vetusta impressão de justiça. Mas nós não procuramos a justiça; procuramos a verdade, que é aquilo que se adquire quando se viaja, para fora das nossas almas, em busca do outro, na consciência plena do ciclo repetido do Eterno Retorno.
domingo, 28 de agosto de 2022
Prosa - Impressões do Mar
O silêncio da noite devolve-me a nostalgia do sonhar, só a música me impede de voar... Solto a imaginação e percorro o universo; gosto de sonhar, fingir viver uma existência despreocupada, como se nos meus ombros não se depositassem os pesos hediondos de uma vida contrariada. Mas eu gosto mesmo é de escrever, beber e ouvir música, enquanto sonho, enquanto contemplo universos que estão para além das minhas possibilidades, acessíveis apenas à imaginação infinita. Escrevo despreocupadamente porque sei que ser algum jamais os lerá, não fora assim e até na escrita venceria a minha timidez. Mas não, aqui na escrita não; o meu confessionário de ideias, o meu carpir feliz de vivências extraordinárias. Ah, feliz o homem que escreve para seu bel-prazer pois alcança a imensidão do espaço, feliz o homem que sonha, pois dele é o infinito que está escrito nos céus em letras estreladas de magnitudes impensáveis. Impossível descrever aquela sensação que me liberta quando escrevo; como um espasmo caleidoscópico, quando acabo de escrever, sinto-me simultaneamente vazio e pleno. Já descarreguei aquela frémula excitação que me dominava, realizando o desejo, sinto-me realizado, sinto-me plenamente utilizado, aquela sensação feliz do trabalho cumprido quando me deito e tenho a consciência tranquila no aconchego da almofada porque sei que fiz um bem à minha pessoa. Ler transporta igualmente essa maravilhosa sensação do fecundo trabalho mental, porquanto semeia a ideia que há de depois lavrar na prosa ou na poesia. Mas ler não liberta tanto quanto o escrever, não compreende aquela sensação selvática do escrever, aquela experiência catártica que mata todas as indefinições, todos os impulsos eletrizantes que me dominam e inibem, que me violentam. Quando escrevo, é como se morresse e, nas entranhas do meu cadáver, fecundasse o meu próximo eu numa experiência eterna de múltiplas vivências que se vão sucedendo. Como a cobra que se regenera, também eu vou alternadamente combinando essa mutação de perspectivas, de ideias, de conhecimentos e de sentimentos. Esvai-se todo o possessivo constrangimento de ódio, de raiva, da violência contida no trato com as pessoas e em que não posso descarregar nelas todas essas sensações, conquanto amiúde o desejasse; por isso, não há noite mais tranquila do que aquela em que escrevo, acompanhada no espírito pela música, acompanhado no corpo por uma bebida e, na satisfação destas volúpias, ensaiar o desfecho noturno na calma repousante de uma boa leitura. Escrever devolve-me as impressões de sonhar...
MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto de Impressões do Mar, publicado em 2014]
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segunda-feira, 22 de agosto de 2022
Poema - Margens dum Mar Menor
O meu imenso oceano
É
um rio com margens estreitas
Como
as pulsações dum mesmo povo.
O
meu oceano é um rio lusitano
Em
cujas margens se fala português,
Feito
de águas passadas, corrente de futuro.
O
meu oceano é um mar de História,
Navega-se
impressões oceânicas de dor,
Mergulha-se
maresias de compreensão,
Parece
que é tudo ondas de sabedoria,
Riachos
de acontecimentos já muito vividos
Em
profundezas abissais de mútuas desconfianças.
O
meu oceano é um mar interior,
Inteiramente
fechado pela alegria do povo
Que
nele circula com o saber e a devoção
De
transportar História, riquezas, vida,
Transportando
contudo a incompreensão
De
quem não soube pesar as caravelas,
De
quem não soube contar os escravos
Ou
as largas pepitas de ouro
Ou
as madeiras exóticas da floresta
Ou
ainda a cultura e os monumentos,
Os
homens, as mulheres e as crianças
Que
são a água e são a vida deste rio.
O
meu oceano é um rio imenso de vida,
Soberano
nas decisões, no presente e no futuro.
Mas
continua a ser o mesmo rio
Em
cujas margens se inventou uma nova era,
Em
cujas águas se navegou o destino,
Em
cujo sal se chorou o mundo.
MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto do livro Peregrinações]
sábado, 20 de agosto de 2022
Romance - As Faces de Maya
Ando na chuva fria porque já caminhei no sol ardente e me delicio com os alvores do dia porque já sofri com a solidão da noite. Percorro a vida porque já enfrentei a morte e na dor da ausência há o amargo trevo da saudade de um tempo que não volta, de uma pessoa que não mais verei, de uma memória que passou e que agora se aloja no meu coração e vai descendo devagar e insinuosamente até alcançar a alma onde deveras se esconde. A inevitabilidade da morte é que me traz o amor à vida e o que ela me dá. Sou um guardador de inúmeras e infindáveis memórias do mundo e que agora, porém, se recolhem à solidão de um quarto, de um mero aposento de vida de quatro paredes onde ainda viceja a felicidade que é viver, que é existir. Vejo o quarto onde moro e os objetos que nele permanecem, indiferentes à minha vontade. Mas estariam eles aqui se neles eu não pensasse, se deles não cogitasse a sua existência?... Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença, deixei pedaços de mim espalhados por esse mundo, por pessoas que mal conheci e outras que, de tanto bem conhecer, parece que se apagaram das suas próprias vidas e apenas deixaram uma luz em mim, como uma estrela fulgurante piscando no céu a luz derradeira perdida há milhões de anos. “Por tudo aquilo que vivi em toda a minha vida, em tudo o que senti, no amor e no ódio, na alegria e na dor, na saúde e na doença...”, parece até que estou a fazer juras de amor no altar da vida, diante do sacerdote do Tempo ao desposar a minha vida e tudo o que ela me traz, como a noiva arrebatadora por quem todo o homem se apaixona.
Prefiro não ter amigos; tê-los e mantê-los seria um desperdício de energia e uma pura perda de tempo. Ter amigos pressupõe ter a sua posse e propriedade, o que seria escravizá-los e nesse caso não seriam amigos, mas cativos da minha alma, escravos das minhas vontades, alheios a qualquer forma de crítica ou livre arbítrio. Prefiro ter como amigos o mar que banha as minhas ilusões, o vento que espalha as minhas convicções ou o tempo que afaga os meus devaneios lúdicos. O meu pensamento é caótico, tempestuoso e livre, transversal à evolução das coisas, como se buscasse ser a contramão de todos os sentidos. Percorro os meandros que a vida me coloca em labirínticos desafios, em busca de um algo que dê sentido a toda essa expressão catártica que irrompe abruptamente na minha visão, que me violenta sensorialmente para que eu consiga enxergar o que de mim se aparta, para que eu consiga perceber o que em mim se oculta, para que eu consiga, enfim, crescer exponencialmente na minha consciência, e na consciência de todas as coisas. Verifico que há tanto por aprender quanto na vida há por amar todas as coisas porque na expressão do amor se sente deveras a expressão do saber e do conhecer, como se um e outro andassem de mãos juntas em tormentos e sobressaltos para enfim se acharem num qualquer remanso da vida, celebrando a vida e o que ela nos traz na augusta sabedoria do prazer sensorial e, porque não, carnal.
MARIANO MENDONÇA LOPES (excertos do romance As Faces de Maya)