domingo, 28 de agosto de 2022

Prosa - Impressões do Mar

O silêncio da noite devolve-me a nostalgia do sonhar, só a música me impede de voar... Solto a imaginação e percorro o universo; gosto de sonhar, fingir viver uma existência despreocupada, como se nos meus ombros não se depositassem os pesos hediondos de uma vida contrariada. Mas eu gosto mesmo é de escrever, beber e ouvir música, enquanto sonho, enquanto contemplo universos que estão para além das minhas possibilidades, acessíveis apenas à imaginação infinita. Escrevo despreocupadamente porque sei que ser algum jamais os lerá, não fora assim e até na escrita venceria a minha timidez. Mas não, aqui na escrita não; o meu confessionário de ideias, o meu carpir feliz de vivências extraordinárias. Ah, feliz o homem que escreve para seu bel-prazer pois alcança a imensidão do espaço, feliz o homem que sonha, pois dele é o infinito que está escrito nos céus em letras estreladas de magnitudes impensáveis. Impossível descrever aquela sensação que me liberta quando escrevo; como um espasmo caleidoscópico, quando acabo de escrever, sinto-me simultaneamente vazio e pleno. Já descarreguei aquela frémula excitação que me dominava, realizando o desejo, sinto-me realizado, sinto-me plenamente utilizado, aquela sensação feliz do trabalho cumprido quando me deito e tenho a consciência tranquila no aconchego da almofada porque sei que fiz um bem à minha pessoa. Ler transporta igualmente essa maravilhosa sensação do fecundo trabalho mental, porquanto semeia a ideia que há de depois lavrar na prosa ou na poesia. Mas ler não liberta tanto quanto o escrever, não compreende aquela sensação selvática do escrever, aquela experiência catártica que mata todas as indefinições, todos os impulsos eletrizantes que me dominam e inibem, que me violentam. Quando escrevo, é como se morresse e, nas entranhas do meu cadáver, fecundasse o meu próximo eu numa experiência eterna de múltiplas vivências que se vão sucedendo. Como a cobra que se regenera, também eu vou alternadamente combinando essa mutação de perspectivas, de ideias, de conhecimentos e de sentimentos. Esvai-se todo o possessivo constrangimento de ódio, de raiva, da violência contida no trato com as pessoas e em que não posso descarregar nelas todas essas sensações, conquanto amiúde o desejasse; por isso, não há noite mais tranquila do que aquela em que escrevo, acompanhada no espírito pela música, acompanhado no corpo por uma bebida e, na satisfação destas volúpias, ensaiar o desfecho noturno na calma repousante de uma boa leitura. Escrever devolve-me as impressões de sonhar...


MARIANO MENDONÇA LOPES [Excerto de Impressões do Mar, publicado em 2014]

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