1994-2024
– Reflexões sobre uma vida no Brasil
Foi em 1994 que eu decidi
morar no Brasil (com uma breve pausa em 1995 em Portugal), mais
particularmente, na deslumbrante e sempre cativante cidade do Recife. “Decidi”
não é a palavra que melhor descreve os meus sentimentos de outrora; eu apenas
pretendia passar alguns anos aqui, desfrutando os conhecimentos do meu
Bacharelato em Turismo conquistado pouco tempo antes, antes de rumar para
outros destinos ensolarados espalhados mundo afora. Mas não foi isso que
aconteceu, a vida sempre se escreveu certa para mim por linhas incertas. Eu era
um jovem sonhador, prenhe de ideias e projetos de mudar a minha vida e que, aos
poucos, acabei realizando, num cunho pessoal de realização pessoal e
profissional. Conquistei tudo o que eu queria, cheguei mais além do que sonhei
e obtive da vida mais do que eu havia pedido.
O Recife que eu conheci
era alegre e espontâneo, respirava alegria que a todos contagiava,
principalmente os turistas loucos por esse frenesim, pelo frevo e maracatu,
pelo coco gelado e doce na beira-mar, pela brisa quente que respirava
tropicalidade no final da tarde, pelo gingado e malemolência das pernambucanas;
havia (muita) pobreza e prédios degradados, sim havia, mas havia alegria e
festa. Havia o Carnaval em Boa Viagem e Olinda, mas também o ReciFolia em
outubro. Recife era festa e alegria o ano inteiro e viver no Recife era
experimentar a sempiterna sensação de felicidade, a festa da vida.
Os domingos eram
inevitavelmente “recheados” com programas televisivos que os brasileiros
assistiam ávida e compulsivamente; Hebe Camargo, Jô Soares, Gugu Liberato, o
Fantástico e, o maior de todos, Sílvio Santos que agora se despediu de nós. E
havia Senna para alegrar dominicalmente o coração dos brasileiros. Nem vou
falar da seleção brasileira...
O tempo foi passando,
indelével e inexoravelmente. Não vejo mais a alegria espontânea na capital de
Pernambuco, como também não encontro mais essa ávida sensação de viver a vida
de uma forma impensada, livre e absoluta. Percebo que as pessoas hoje carregam
em seu semblante sisudo uma preocupação que antes era latente, mas hoje
evidente; o churrasco do final de semana era garantido, independentemente da
condição financeira, assim como a confraternização, a conversa demorada sobre
banalidades. E, ao cabo de 30 anos (sim, trinta anos) me apercebo que o mundo
mudou muito, muito mesmo, mas que as gerações atuais, como as das minhas
filhas, não dispõem mais de uma referência válida para perceber essa transição
e refletir em como isso afeta as suas vidas. E isso é preocupante porque as
pessoas não conseguem aferir de uma forma exata a evolução e a transformação da
Humanidade. O ataque às Torres Gêmeas em 2001, a crise financeira de 2008 e,
mais recentemente, a pandemia e o confinamento ditaram rumos inquisitoriais a
uma Humanidade que antes ainda desfrutava dos primores ressurgidos dos anos 60
e 70, a despeito de todas as calamidades e catástrofes. O mundo de hoje
cristalizou ideias e pensamentos, não abundam mais, por exemplo, os ideais
hippies da época em que eu nasci nem as extrovertidas realidades dos anos 80,
saídas de uma Guerra Fria então sanada com o fim da União Soviética. O mundo
transita de uma forma insensata para uma ditadura global de costumes e
pensamentos medievais. As pessoas carregam traumas e disforias, discursos
solilóquios em perturbantes estados de insatisfação e frustração e as sociedades
se tornam cobertas de retalhos psicóticos que impedem o individuo de enxergar a
sua própria individualidade e criatividade, preso a um contexto global de
opressão moral e ideológica; é a realidade de “1984” de George Orwell e de
“Farenheit 451” de Ray Bradbury posta em prática.
Quando eu nasci, o mundo
estava dividido em dois blocos, o Ocidente ou NATO (OTAN) e o Pacto de Varsóvia
liderado pela então União Soviética, fruto de dois devastadores conflitos
bélicos que para sempre redefiniram a Humanidade. Mas havia uma liberdade de
pensamento e de crítica epistemológica e existencial que não havia sido ainda
contagiada pela Internet, pela Inteligência Artificial nem tampouco pelas fake news; com o tempo, a História
encarregou-se de demonstrar qual lado era mais livre e democrático, e foi nessa
década de 90 que, sob os auspícios de uma emergente felicidade global pós
Guerra Fria, eu cheguei ao Recife, jovem sonhador.
Ao cabo de quase seis
décadas de vida (como o tempo passa...), ainda sou aquele jovem sonhador,
prenhe de ideias e projetos pessoais e profissionais. Enquanto vivo eu for,
manterei vividamente acesa a chama da vida porque eu adoro viver. Mas me
preocupo com o mundo que deixarei para as minhas filhas quando eu partir. Não
será infelizmente o mesmo mundo que me acolheu naquele “Verão do amor” em que
cheguei a este planeta em 1967. Também percebo que não existem mais as
referências que eu tinha do mundo e que me fizeram crescer de forma holística;
os meus heróis foram morrendo, não de overdose, mas de uma existência brilhante
e pautada pelo exemplo. As referências mediáticas que eu tinha também não
lograram ser substituídas a contento. Enfim, sinto que o mundo hoje não está
melhor, apenas diferente. A quem bradarão os sinos, por quais ideais e
conceitos viveremos então? Às vezes, eu queria voltar no tempo...
MARIANO MENDONÇA LOPES