domingo, 18 de agosto de 2024

Crônica - 1994-2024 - Reflexões sobre uma vida no Brsil

 1994-2024 – Reflexões sobre uma vida no Brasil

 

Foi em 1994 que eu decidi morar no Brasil (com uma breve pausa em 1995 em Portugal), mais particularmente, na deslumbrante e sempre cativante cidade do Recife. “Decidi” não é a palavra que melhor descreve os meus sentimentos de outrora; eu apenas pretendia passar alguns anos aqui, desfrutando os conhecimentos do meu Bacharelato em Turismo conquistado pouco tempo antes, antes de rumar para outros destinos ensolarados espalhados mundo afora. Mas não foi isso que aconteceu, a vida sempre se escreveu certa para mim por linhas incertas. Eu era um jovem sonhador, prenhe de ideias e projetos de mudar a minha vida e que, aos poucos, acabei realizando, num cunho pessoal de realização pessoal e profissional. Conquistei tudo o que eu queria, cheguei mais além do que sonhei e obtive da vida mais do que eu havia pedido.

 

O Recife que eu conheci era alegre e espontâneo, respirava alegria que a todos contagiava, principalmente os turistas loucos por esse frenesim, pelo frevo e maracatu, pelo coco gelado e doce na beira-mar, pela brisa quente que respirava tropicalidade no final da tarde, pelo gingado e malemolência das pernambucanas; havia (muita) pobreza e prédios degradados, sim havia, mas havia alegria e festa. Havia o Carnaval em Boa Viagem e Olinda, mas também o ReciFolia em outubro. Recife era festa e alegria o ano inteiro e viver no Recife era experimentar a sempiterna sensação de felicidade, a festa da vida.

 

Os domingos eram inevitavelmente “recheados” com programas televisivos que os brasileiros assistiam ávida e compulsivamente; Hebe Camargo, Jô Soares, Gugu Liberato, o Fantástico e, o maior de todos, Sílvio Santos que agora se despediu de nós. E havia Senna para alegrar dominicalmente o coração dos brasileiros. Nem vou falar da seleção brasileira...

 

O tempo foi passando, indelével e inexoravelmente. Não vejo mais a alegria espontânea na capital de Pernambuco, como também não encontro mais essa ávida sensação de viver a vida de uma forma impensada, livre e absoluta. Percebo que as pessoas hoje carregam em seu semblante sisudo uma preocupação que antes era latente, mas hoje evidente; o churrasco do final de semana era garantido, independentemente da condição financeira, assim como a confraternização, a conversa demorada sobre banalidades. E, ao cabo de 30 anos (sim, trinta anos) me apercebo que o mundo mudou muito, muito mesmo, mas que as gerações atuais, como as das minhas filhas, não dispõem mais de uma referência válida para perceber essa transição e refletir em como isso afeta as suas vidas. E isso é preocupante porque as pessoas não conseguem aferir de uma forma exata a evolução e a transformação da Humanidade. O ataque às Torres Gêmeas em 2001, a crise financeira de 2008 e, mais recentemente, a pandemia e o confinamento ditaram rumos inquisitoriais a uma Humanidade que antes ainda desfrutava dos primores ressurgidos dos anos 60 e 70, a despeito de todas as calamidades e catástrofes. O mundo de hoje cristalizou ideias e pensamentos, não abundam mais, por exemplo, os ideais hippies da época em que eu nasci nem as extrovertidas realidades dos anos 80, saídas de uma Guerra Fria então sanada com o fim da União Soviética. O mundo transita de uma forma insensata para uma ditadura global de costumes e pensamentos medievais. As pessoas carregam traumas e disforias, discursos solilóquios em perturbantes estados de insatisfação e frustração e as sociedades se tornam cobertas de retalhos psicóticos que impedem o individuo de enxergar a sua própria individualidade e criatividade, preso a um contexto global de opressão moral e ideológica; é a realidade de “1984” de George Orwell e de “Farenheit 451” de Ray Bradbury posta em prática.

 

Quando eu nasci, o mundo estava dividido em dois blocos, o Ocidente ou NATO (OTAN) e o Pacto de Varsóvia liderado pela então União Soviética, fruto de dois devastadores conflitos bélicos que para sempre redefiniram a Humanidade. Mas havia uma liberdade de pensamento e de crítica epistemológica e existencial que não havia sido ainda contagiada pela Internet, pela Inteligência Artificial nem tampouco pelas fake news; com o tempo, a História encarregou-se de demonstrar qual lado era mais livre e democrático, e foi nessa década de 90 que, sob os auspícios de uma emergente felicidade global pós Guerra Fria, eu cheguei ao Recife, jovem sonhador.

 

Ao cabo de quase seis décadas de vida (como o tempo passa...), ainda sou aquele jovem sonhador, prenhe de ideias e projetos pessoais e profissionais. Enquanto vivo eu for, manterei vividamente acesa a chama da vida porque eu adoro viver. Mas me preocupo com o mundo que deixarei para as minhas filhas quando eu partir. Não será infelizmente o mesmo mundo que me acolheu naquele “Verão do amor” em que cheguei a este planeta em 1967. Também percebo que não existem mais as referências que eu tinha do mundo e que me fizeram crescer de forma holística; os meus heróis foram morrendo, não de overdose, mas de uma existência brilhante e pautada pelo exemplo. As referências mediáticas que eu tinha também não lograram ser substituídas a contento. Enfim, sinto que o mundo hoje não está melhor, apenas diferente. A quem bradarão os sinos, por quais ideais e conceitos viveremos então? Às vezes, eu queria voltar no tempo...

 

MARIANO MENDONÇA LOPES

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