domingo, 2 de fevereiro de 2020

Prosa

Só conhecemos bem as nossas forças quando são elas tudo o que nos resta. Só aprendemos a sentir quando a dor passou a ser a nossa referência e, na amargura de viver, sofrer passou a ser o preço a pagar pela inconsequência de existir. Só conhecemos bem o horizonte da dor quando tudo o mais deixou de fazer sentido e o vazio da nossa vida nos fez sair da zona de conforto para nos encontrar em permanente desafio com a consciência. Do passado ficou apenas a amarga recordação que a leviandade deixou, por uma ausência de compromisso com o universo e conosco próprios, desconhecendo por completo ou enxergando por uma visão míope que as consequências atuam em função das ações ou omissões, de que tudo o que nos acontece hoje ou amanhã é indubitável e inexoravelmente o resultado das nossas ações no ontem, e que o âmago para o percurso de dor que vivenciamos e partilhamos nessa nossa existência tem que ser visto em função e como resultado de alguma existência num plano anterior. O Universo não é nem mais justo nem mais injusto conosco do que é com os outros, apenas exerce a influência que nós próprios geramos com as nossas ações ou a falta delas.
 
Foi interrompido nos seus pensamentos pela voz do comissário que instruía os passageiros para o voo prestes a iniciar-se. Iria ser uma longa noite e era necessário que todos se acomodassem. Para Ernesto, porém, havia um só pensamento, que ele não sabia esconder do seu coração: Elsa.
 
Armênio, porém, não havia seguido a recomendação e olhou para trás antes de subir a plataforma de embarque. Todos se haviam retirado, menos o velho Köller que segurava a mão de Elsa, mantendo-se impávido, fitando demoradamente o Zeppelin, certo de encontrar o olhar de Armênio e de Ernesto.

MARIANO MENDONÇA LOPES

[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

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