Um pequeno rochedo
na praia da Rocha, Algarve, submerso a pouco mais de um metro de profundidade,
congestionado de vida multicolorida em que se percebiam algas de diferentes
cores, ouriços do mar e outras micro-formas de vida igualmente extasiantes, foi
a minha porta de entrada para o mundo submarino.
Ainda hoje,
volvidos tantos anos e tantas evoluções, experiências inolvidáveis e outras
realidades igualmente metafísicas e surrealistas, não esqueço jamais a intensa
emoção de mergulhar a cabeça e descobrir, sob a superfície, linha divisora dos
mundos, aquele mesmo rochedo que eu via fora de água sem tanta intensidade, mas
que ali, mergulhado no elemento uterino, propiciava outra visão, enxergava um
outro universo. E nunca mais a minha vida seria a mesma...
Pela vida fora, as
imensas e abissais impressões na minha vida acabavam sempre por ter no mar a
sua origem ou destino, numa perpétua narrativa cosmogônica ou escatológica de uma
vida que, afinal, começara em frente ao mar.
Nasci e vivi
sempre à beira-mar, como um destino que biblicamente se cumpre. Mas foi em
África que tudo começou e quiçá acabou, antes mesmo de florescer completamente.
Luanda viu-me nascer e germinar esse gosto salgado pelo mar, pela água quente,
pela vida marinha que, paradoxalmente, eu só viria a conhecer muito mais tarde,
em águas lusas. Mas também foi em Luanda que uma existência morreu, vítima dos
atropelos da guerra, perseguido por dilemas e pesadelos, por imagens que
persistem em viver coladas à minha realidade, aos meus anseios e aos meus
projetos. A imagem da criança que sobe as escadas para o avião “Luis de Camões”
e olha de relance o aeroporto à sua esquerda, nos idos de 26 de Agosto de 1974,
permanece indelevelmente intacta até hoje, como vívidas permanecem as memórias
de voltar a um mundo que jamais voltaria a ser meu, se alguma vez em
insucessivas vezes logrou ser meu. Eu vestia um conjunto de jeans com muitas
estrelinhas douradas e parecia que cada estrela daquelas seria um ano da minha
diáspora até finalmente me reencontrar. Viria a reencontrar essa criança,
muitos anos depois, do outro lado do mundo; quis o destino ironicamente que
viesse a residir num outro local localizado sobre o mesma latitude.
Em Luanda eu
nasci, num dia perdido como tantos outros do ano de 1967. Quando eu nasci, não
houve cometas anunciando a minha chegada, nem Reis Magos trazendo presentes;
não houve enxurrada de cartas para me desejar felicidade, nem um batalhão de
jornalistas a cobrir o evento. Não havia mensagens postadas na Internet nem
mensagens de boas-vindas pelo celular. Quando eu nasci, parecia mais um dia
qualquer porque na realidade era um dia qualquer. Sem pompa nem circunstância,
sem fogos de artifício nem paradas de honra, apenas uma equipe médica e a minha
mãe saudaram a minha vinda.
A Baía de Luanda é
um lugar privilegiado para quem teve o privilégio de a conhecer, de viver as
suas praias, os seus aromas tropicais, a cerveja gelada convidativa no dia
quente ou o mar parado insinuando um mergulho. Para mim, foi como uma realidade
distante que quando parecia que se ia tornar realidade, a guerra transformou na
ilusão, na dor da despedida e no grilho da partida.
Lisboa acolheu-me
como uma madrasta que se esforça em amar o enteado, mas ressalvando sempre as
diferenças de quem não saiu do seu ventre. Foi Lisboa que me criou, que me
formou, que me fez homem no sentido crítico da palavra. O meu universo
cognitivo, emocional, lógico e intuitivo nela se formou, grau superior e
avançado que em outros locais haveria de conhecer pós-graduações, mas teve em
Lisboa a sua base, os seus alicerces. Mentalmente, sou lisboeta mas o que o
coração chama mesmo de casa é Cascais, onde morava grande parte da minha
família paterna e onde eu me deslocava tantas vezes quanto as ínfimas possibilidades
o permitiam. Cascais é a minha casa espiritual, o lugar onde o meu coração
descansa em paz, onde a minha veia poética brota selvática, gorgolejante e
aromática. É um outro clima, o clima próprio dos poetas e dos artistas, é um
outro ambiente, o ambiente dos pintores e dos sonhadores, das almas perdidas
que se encontram no universo, de Holandeses Errantes achados entre os mastros
dos iates, entre as pedras das calçadas e entre os quadros dos palácios, onde o
meu presente convive com um passado que jurou já ter vivido, embora eu não
acredite em reencarnações...
Mas foi no
Promontório de Sagres onde, certa vez, hipnotizado por aquele azul intenso de
magia e de infinito, imbuído do espírito empreendedor do Infante que, pela
primeira vez, se arvorou o desejo de viajar, de fazer vida fora de Portugal. O
Promontório é um atiçante e estimulante convite ao sonho, a novas aventuras e a
infinitas partidas. Geminado com o Cabo Canaveral, na Flórida, ambos são
plataformas de partida, ambos são rampas de aventuras rumo ao desconhecido. De
Sagres, saíram os desejos do Infante de singrar pelo mar distante e
desconhecido de outrora; de Canaveral, sairiam, quinhentos anos após o Infante,
as naves para navegar pelo espaço, fora da Terra, em busca de outras
civilizações.
Foi pelo mar que
eu vim parar ao Recife, embora transportado num batel alado, mas hipnotizado
com aquela visão impressionante da ilha de Itamaracá, da praia de Boa Viagem ou
da orla de Pernambuco que seduziu um turista mas, acima de tudo, um cativo de
ideias e perspectivas para a cidade e para a região. Ainda hoje, mergulhado em
infindáveis e quiçá incomensuráveis problemas, é à beira-mar, durante os meus
passeios e caminhadas pelo calçadão, que repouso a mente, que evoluo e crio
algumas ideias, alinhavando o futuro com o cenário constante do mar que vem até
mim para me sugerir novos caminhos. Não há para mim nada melhor do que sentir a
brisa marinha, ouvindo o alegre marulhar a vencer o som intrépido dos carros e
a morrer na areia os embalos salgados de além-mar, de outras gentes e de outras
gestas, talvez a pensarem e a idealizarem sonhos e a construírem realidades,
tendo por testemunha fiel dos seus pensamentos a vastidão oceânica do que foi
outrora o mistério e a lenda e é hoje em dia o destino de muitos.
MARIANO MENDONÇA LOPES