domingo, 17 de setembro de 2023

Prosa - Excerto de Impressões do Mar

Um dia, eu vou morrer, soçobrado pelos anos acumulados, pelas doenças mal curadas, pelos sintomas mal sentidos. Mas que fique em mim um álbum intensamente vivido de emoções e sensações, de experiências inusitadas e de momentos plenamente preenchidos, vívidas e satisfeitas vontades em conhecer o sempre novo, sempre curioso, tenazmente corajoso. Que eu possa então regozijar-me pelos instantes sentidos, passados e vividos, deixados na alvorada das coisas belas e esplendorosas, de um perfeito conhecimento de fato, por ter estado aqui, por ter amado ali, por ter conhecido além; que eu possa então arvorar a causa da minha sabedoria, levantar o padrão dos meus conhecimentos, erguer convicto o lábaro das minhas opiniões, dizendo: “eu já estive aí”. E, então, só então, aquiescer tranquilo ao cântico das Parcas, embalado no letárgico descanso de Hades com o olhar atravessado de quem atravessou o mundo ou pelo menos tudo fez para lobrigá-lo. Enaltecer na minha biblioteca a mais-valia de um empirismo prático e pragmático, folheando retratos da vida e paisagens da Humanidade, capítulos do mundo nas páginas da minha existência e sorrir, embevecido, ao olhar a palavra pictagórica estampada no livro “eu já estive aí”. Que eu possa então recordar tais momentos contemplados de emoção, sabendo frutificar na memória comprimidos instantes de muitos outros instantes, remédio contra a senilidade e contra a debilidade, revivendo no olhar aquelas horas intensas de vida, coloridas por uma paixão incomensurável de viver, por uma sede fatídica de conhecer os fatos, de amar a vida como se de fugazes instantes se tratassem, destinados a não mais voltarem, a não mais se manterem vivos, amarrados a um passado do qual fazem ou farão parte daí a instantes. Um dia, eu vou morrer. Mas que tenha a certeza de ter vivido, de ter amado, de ter experimentado, de ter errado, de ter passado, de ter gozado, de ter tirado, de ter feito, de ter existido, defeito, imperfeito, mais-que-perfeito, sem jeito ou trejeito... Um dia, eu vou morrer sim, por ter vivido, por ter sentido, por ter ido, por ter voltado, por me ter acabado, por ter começado, por ter recomeçado, por ter perdoado, por ter dado, por ter recebido, por ter falado, por ter conhecido, por ter desconhecido, por ter caído, por me ter levantado, por ter esperado, por não ter chegado, por ter partido... Um dia eu vou morrer por ter vivido.

MARIANO MENDONÇA LOPES

[Excerto de Impressões do Mar, publicado em 2014]

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