domingo, 24 de setembro de 2023

Impressões do Mar - Excerto

 Impressões do Mar

Um pequeno rochedo na praia da Rocha, Algarve, submerso a pouco mais de um metro de profundidade, congestionado de vida multicolorida em que se percebiam algas de diferentes cores, ouriços do mar e outras micro-formas de vida igualmente extasiantes, foi a minha porta de entrada para o mundo submarino.

 

Ainda hoje, volvidos tantos anos e tantas evoluções, experiências inolvidáveis e outras realidades igualmente metafísicas e surrealistas, não esqueço jamais a intensa emoção de mergulhar a cabeça e descobrir, sob a superfície, linha divisora dos mundos, aquele mesmo rochedo que eu via fora de água sem tanta intensidade, mas que ali, mergulhado no elemento uterino, propiciava outra visão, enxergava um outro universo. E nunca mais a minha vida seria a mesma...

 

Pela vida fora, as imensas e abissais impressões na minha vida acabavam sempre por ter no mar a sua origem ou destino, numa perpétua narrativa cosmogônica ou escatológica de uma vida que, afinal, começara em frente ao mar.

 

Nasci e vivi sempre à beira-mar, como um destino que biblicamente se cumpre. Mas foi em África que tudo começou e quiçá acabou, antes mesmo de florescer completamente. Luanda viu-me nascer e germinar esse gosto salgado pelo mar, pela água quente, pela vida marinha que, paradoxalmente, eu só viria a conhecer muito mais tarde, em águas lusas. Mas também foi em Luanda que uma existência morreu, vítima dos atropelos da guerra, perseguido por dilemas e pesadelos, por imagens que persistem em viver coladas à minha realidade, aos meus anseios e aos meus projetos. A imagem da criança que sobe as escadas para o avião “Luis de Camões” e olha de relance o aeroporto à sua esquerda, nos idos de 26 de Agosto de 1974, permanece indelevelmente intacta até hoje, como vívidas permanecem as memórias de voltar a um mundo que jamais voltaria a ser meu, se alguma vez em insucessivas vezes logrou ser meu. Eu vestia um conjunto de jeans com muitas estrelinhas douradas e parecia que cada estrela daquelas seria um ano da minha diáspora até finalmente me reencontrar. Viria a reencontrar essa criança, muitos anos depois, do outro lado do mundo; quis o destino ironicamente que viesse a residir num outro local localizado sobre o mesma latitude.

 

Em Luanda eu nasci, num dia perdido como tantos outros do ano de 1967. Quando eu nasci, não houve cometas anunciando a minha chegada, nem Reis Magos trazendo presentes; não houve enxurrada de cartas para me desejar felicidade, nem um batalhão de jornalistas a cobrir o evento. Não havia mensagens postadas na Internet nem mensagens de boas-vindas pelo celular. Quando eu nasci, parecia mais um dia qualquer porque na realidade era um dia qualquer. Sem pompa nem circunstância, sem fogos de artifício nem paradas de honra, apenas uma equipe médica e a minha mãe saudaram a minha vinda.

 

A Baía de Luanda é um lugar privilegiado para quem teve o privilégio de a conhecer, de viver as suas praias, os seus aromas tropicais, a cerveja gelada convidativa no dia quente ou o mar parado insinuando um mergulho. Para mim, foi como uma realidade distante que quando parecia que se ia tornar realidade, a guerra transformou na ilusão, na dor da despedida e no grilho da partida.

 

Lisboa acolheu-me como uma madrasta que se esforça em amar o enteado, mas ressalvando sempre as diferenças de quem não saiu do seu ventre. Foi Lisboa que me criou, que me formou, que me fez homem no sentido crítico da palavra. O meu universo cognitivo, emocional, lógico e intuitivo nela se formou, grau superior e avançado que em outros locais haveria de conhecer pós-graduações, mas teve em Lisboa a sua base, os seus alicerces. Mentalmente, sou lisboeta mas o que o coração chama mesmo de casa é Cascais, onde morava grande parte da minha família paterna e onde eu me deslocava tantas vezes quanto as ínfimas possibilidades o permitiam. Cascais é a minha casa espiritual, o lugar onde o meu coração descansa em paz, onde a minha veia poética brota selvática, gorgolejante e aromática. É um outro clima, o clima próprio dos poetas e dos artistas, é um outro ambiente, o ambiente dos pintores e dos sonhadores, das almas perdidas que se encontram no universo, de Holandeses Errantes achados entre os mastros dos iates, entre as pedras das calçadas e entre os quadros dos palácios, onde o meu presente convive com um passado que jurou já ter vivido, embora eu não acredite em reencarnações...

 

Mas foi no Promontório de Sagres onde, certa vez, hipnotizado por aquele azul intenso de magia e de infinito, imbuído do espírito empreendedor do Infante que, pela primeira vez, se arvorou o desejo de viajar, de fazer vida fora de Portugal. O Promontório é um atiçante e estimulante convite ao sonho, a novas aventuras e a infinitas partidas. Geminado com o Cabo Canaveral, na Flórida, ambos são plataformas de partida, ambos são rampas de aventuras rumo ao desconhecido. De Sagres, saíram os desejos do Infante de singrar pelo mar distante e desconhecido de outrora; de Canaveral, sairiam, quinhentos anos após o Infante, as naves para navegar pelo espaço, fora da Terra, em busca de outras civilizações.

 

Foi pelo mar que eu vim parar ao Recife, embora transportado num batel alado, mas hipnotizado com aquela visão impressionante da ilha de Itamaracá, da praia de Boa Viagem ou da orla de Pernambuco que seduziu um turista mas, acima de tudo, um cativo de ideias e perspectivas para a cidade e para a região. Ainda hoje, mergulhado em infindáveis e quiçá incomensuráveis problemas, é à beira-mar, durante os meus passeios e caminhadas pelo calçadão, que repouso a mente, que evoluo e crio algumas ideias, alinhavando o futuro com o cenário constante do mar que vem até mim para me sugerir novos caminhos. Não há para mim nada melhor do que sentir a brisa marinha, ouvindo o alegre marulhar a vencer o som intrépido dos carros e a morrer na areia os embalos salgados de além-mar, de outras gentes e de outras gestas, talvez a pensarem e a idealizarem sonhos e a construírem realidades, tendo por testemunha fiel dos seus pensamentos a vastidão oceânica do que foi outrora o mistério e a lenda e é hoje em dia o destino de muitos.

 

MARIANO MENDONÇA LOPES

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