sábado, 17 de agosto de 2019

Prosa - Conto


Raul amava o vento que sussurrava nas copas das árvores ou que perpassava pelas frestas das janelas, acendendo assobios dilacerantes nas noites impetuosas de tempestade. Era capaz de contemplar demoradamente o sinuoso balanço dos ramos, dançando harmoniosamente as sinfonias das intempéries ou, em tempos estivais, a cálida e preguiçosa brisa que mal conseguia convencer uma planta a se mover. Raul guardava sonhos como quem guarda ventos trazidos pela tempestade, como quem quer abraçar o vento para guardá-lo aconchegante e seguro na sua casa; enxergava os ventos como murmúrios confidentes que uma qualquer divindade lhe confidenciaria em demorados sussurros num sôfrego de inspirada iluminação interior; sussurros enigmáticos que ia decifrando no compasso da vida, uma Esfinge interpretada na leitura dos elementos, a paleta de vida que o sol tinge demoradamente nas sombras, e assim se passavam horas contemplando o jardim, abraçado à tecnologia e aos livros, assim a casa se fazia templo de um Universo onde o Tempo é mais do que a dimensão, é o silêncio da eternidade, é o  éter daquilo que É. Quando o vento se estendia inerte sobre as copas das árvores nos dias de calor pesado, Raul divagava longamente sobre a origem do ser, do Universo, de tudo, mas sem esquecer o momento presente que palpitava ali tão ardentemente em seu sangue jovem em ebulição de uma existência emergente. Voltava aos livros que lhe davam margem ao sonho selvagem da tempestade, viajando por jardins viçosos de nenúfares arrebatadores, de narcisos esvoaçantes ou de dálias brilhando loquazes na condição da Primavera.


[Extraído do conto "O Guardador de Ventos", da minha obra "Encontros"]

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Poema - Contemplo uma palmeira que serpenteia


Contemplo uma palmeira que serpenteia
Nas curvas do vento frio de fevereiro
E sinuosamente parece que falseia
A aparência real de um coqueiro.
 
Deixo-me levar pelo sonho que representa
A folhagem verde num dia cinzento,
Horizonte negro no pensamento
E a palmeira, afinal, sempre aparenta
 
Um leve gosto saudosista tropical
Como se esse oceano fosse a margem
Do sonho imensuravelmente imperial.
 
E cego à memória, rendo-me à passagem
Desse aroma além-mar mais que natural,
Essa Vera Cruz que é alma selvagem.


MARIANO MENDONÇA LOPES 
[Extraído da minha obra, Peregrinações]

domingo, 4 de agosto de 2019

Poema - Impressão... O Sol Falece

IMPRESSÃO... O SOL FALECE
 
Sentem-se acordes distantes mas defronte
Da alma vivida e pulsante,
Centelha de vida, impressão cinzenta
Correndo no limiar do horizonte
Como quem sobe uma escada rolante
Para descobri-la parada e ferrugenta.
 
Sente-se que há algo de diferente
Que paira no ar, insólita aparição,
O sol é um vasto globo escarlate
Dançando o ritmo feérico e espectral
 
Que convulsa e embriaga esta gente,
Parece sonho, parece apenas alucinação
Quando no ritmo de fuga o dia parte
E lança línguas coloridas duma visão sobrenatural.
Ah, é esta beleza que inebria e esmaga
Com seu quê de belo e avassalador,
Esse gosto de sofrer, esse impulso de chorar,
Vive-se numa redoma, luz frenética e vaga,
Parece um qualquer surrealismo sonhador
Em que tudo ao redor morre ao contemplar.
 
Eu fico parado mas há quem continue
Como se não fosse nada, fosse tudo normal,
Como se aquilo existisse todos os dias.
Pode lá ser... Este rio, este azul que flui
E é uma massa corrente carpindo o memorial
Da cidade em perpétuo rosário de melancolias.
 
Impressão, tudo levita, tudo se emociona,
Parece que flutuamos no éter eterno
E este rio, estas pedras falam de coisas belas,
Coisas naturais quando a gente se apaixona.
E como nada sentir neste ambiente etéreo
Quando nos contemplam miríades de janelas...
 
Esta música que paira no ar,
Ah, esta melodia não se esquece.
Faz-me sofrer, faz-me sonhar
Como se fosse tudo ver e acreditar.
 
Impressão... O Sol falece.
 
MARIANO MENDONÇA LOPES [Extraído da minha obra, Peregrinações]

Poema - Cais do Império

CAIS DO IMPÉRIO
 
Há sentimentos estrangeiros
Se jogando contra o cais
Lançando promessas, soltando desejos
Como quem inventa sonhos derradeiros
E invoca vontades sobrenaturais
Com orações mundanas, naturais festejos.
 
Há impressões de vidas estrangeiras
Se colorindo de ideias na Cidade
E, quem diria, vencem e se vingam.
Como quem ama, são almas brasileiras,
Movimentos africanos, luzes sem idade,
Negócios da China, que significam?
 
E, como que juntos num só destino,
Fazem de Lisboa um universo pequenino.
 
A minha alma é um rosto tropical
Que se desenha contra as palmeiras
Balançando com saudade, com o ritmo sensual
E a ginga sedutora das danças brasileiras.
 
Há sentimentos meus que são humanos
E há emoções minhas, deveras pessoais,
Que brotam ao passear pelas ruas da Cidade;
Navegam noutros mundos, exóticos oceanos
Que trazem especiarias e o balanço dos coqueirais
Depositando em mim o dom da ubiquidade.
 
Estou em Lisboa, estou no Universo,
Não tenho espaço, não tenho tempo.
Tenho apenas o ritmo único do verso
E a pulsação métrica deste sentimento.
 
E no cais vivem arvorados
Pensamentos distantes voltando agora,
Luzes infinitas de muitos passados
Quando a memória navegava outrora
Em sentimentos estrangeiros ora ancorados.


MARIANO MENDONÇA LOPES [Extraído da minha obra, PEREGRINAÇÕES]

sábado, 3 de agosto de 2019

Prosa



Às vezes é bom andar devagar na vida. Viver é convidar o presente e despedir o passado. Deixar levantar a poeira que se desprende do passado, que faz ressurgir no presente as tênues lembranças dos momentos em que, outrora, vivíamos felizes na inocência dos sentidos fáceis da vida, dos pensamentos imediatos para descrever os acontecimentos, das palavras que se buscavam para colorir os momentos, para inventar as brincadeiras, construindo mundos onde havia apenas a brisa dos tempos, construindo personagens históricas onde havia apenas a imaginação dos amigos e, quantas vezes, apenas a nossa presença... Às vezes, é bom andar devagar no tempo. Sussurrar ao vento a companhia agradável de estar só, mergulhar despido na onda do mar que nos traz a realidade azul, celebrar a vida no canto das aves, na brisa que cutuca a copa das árvores, observando a imensidão do céu, do sonho, e do tempo que anda devagar. Às vezes é bom andar, devagar na vida e parando no tempo só para descobrir que há um instante de vida a viver de cada vez, em cada passo, em cada despedida.

 

Na senda da vida, o sucesso não se constrói só com vitórias. As derrotas são como balizas para nos orientarem de volta ao caminho correto, sem altivez nem soberba, apenas uma augusta humildade. Não existem insucessos, o que existe mesmo são fracassos, sem meias-verdades nem desculpas. Errar, avaliar e ponderar o erro, esse é o caminho para se aprender. Não há outra forma de chegarmos à perfeição, senão experimentando o gosto amargo e adstringente do fracasso e nos lembrarmos de que todos os dias temos sempre muito a aprender na vida e a aprendermos conosco próprios.

 

A felicidade é um estado de equilíbrio e, para que tal exista, é necessário que as expectativas que temos em relação à vida sejam equivalentes aos resultados reais que obtemos com as nossas ações. Se nada fizermos em relação à mudança nos nossos comportamentos e hábitos, nada obteremos como resultado. Com isso, haverá sempre um desequilíbrio que é o estado de não felicidade.

 

Tudo isso traz em nós a percepção do movimento, de um fluxo material da alma através de um percurso espiritual de distintos planos existenciais no qual existimos, no qual evoluímos o nosso karma. Todo este ciclo evolutivo da alma em diferentes percepções materiais induz ao conhecimento interior e, em última análise, à transmigração em diferentes reinos e se designa por Samsara, o ciclo de nascimento, morte e renascimento da consciência e da alma, sob a vertente da impermanência, do desassossego e da ausência de identidade do karma. Na busca pela ausência do sofrimento que nos conduz ao Nirvana, a roda de Samsara contempla seis fases, ou caminhos, pelos quais o karma deverá passar: Deva, Asura, Manusya, fase animal, fase preta, e Naraka, o lado mais obscuro.
 
MARIANO MENDONÇA LOPES [Trecho da minha obra, As Faces de Maya]

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Crónica - UM PLANETA PARA SOPHIA

UM PLANETA PARA SOPHIA

 
Quando eu era criança, o meu mundo era mais mundo. Inebriados na atmosfera maniqueísta do “nós e eles”, respirava-se o gélido ar da Guerra Fria, conscientes de que “nós” éramos os bons e “eles” eram os vilões, pouco importava o lado do jogo ou da batalha em que se estivesse. Não havia 50 tons de cinza nem de qualquer coisa para matizar o jogo do cenário político e geoestratégico. As coisas eram polarizadas no eixo entre EUA e União Soviética, dividido pelo Muro de Berlim, e no diferendo Norte-Sul onde o Hemisfério Norte era o rico e desenvolvido mundo dos brancos e nem tão brancos assim, enquanto o Hemisfério Sul representava o subdesenvolvimento, a fome e a miséria das demais raças e cores. Almejava-se uma certa estabilização social, volvidos os tempos conturbados da Segunda Guerra Mundial e da reconstrução da Europa, e parecia que tudo estava bem assim na mecânica determinista de um Universo pesado e previsível, marchando indelevelmente no compasso programado da evolução humana.

 
 
No mundo em que havia o nosso lado e o lado dos outros, um lado ao qual raramente se acedia e nem se queria chegar lá, o preço a pagar por essa evolução humana tão cortejada era debitado do lado de lá, num lado em que apenas constavam os que não tinham lado nem voz e onde se poderiam verter despudoradamente os subprodutos da nossa consciência e do nosso progresso. Não havia ainda consciência ambiental e a poluição era apenas e tão-só o fruto da evolução num sabor pouco palatável que surgira com a Revolução Industrial e que subitamente nos passara do estado selvagem e selvático para a condição superior da raça humana. A nós, e não a eles... Uma nova consciência, porém, emergia na voz dos ecologistas, bizarras e exóticas personagens, cujo comportamento peculiar remetia mais a um Woodstock em fim de festa do que a um novo perfil político. No clamor da recém-criada casta dos ecologistas, o nosso mundo, essa epopeia do desenvolvimento humano que se narrava como se de uma écloga se tratasse, perigava a destruição e a exaustão dos mananciais e recursos naturais, caso nada fosse feito, e a reserva de vida e de ar puro poderia doravante apenas circunscrever-se ao “outro lado”, àquele lado que tanto se desvalorizava por nele não estarem presentes as sementes do progresso. Não havia ainda 50 tons de cinza, mas apenas diferentes cambiantes de poluição, pelo que começou uma corrida maluca por novas fontes de energia, limpas e renováveis, corrida que se acelerou quando os países da todo-poderosa OPEP, a Organização dos Países Produtores de Petróleo, resolveram radicalizar, promovendo o corte da produção para aumentar o preço. Corria o ano de 1973 de uma década marcada por convulsões políticas e sociais um pouco por todo o mundo. Apesar disso, não era o mundo descartável da atualidade e as coisas ainda se faziam para durarem.

 

Ainda se ouvia de margens plácidas bradar a voz profética e melodramática de alguns arautos do progresso puro, invocando a perda da qualidade de vida e o aumento do custo de produtos básicos decorrente dessa busca por energias limpas, alimentos limpos, combustíveis limpos, etc., quando se deu o desastre de Chernobyl, em 1986. O ambiente pesado e soturno da então União Soviética transparecia na glasnost e na perestroika promovidas pelo então novo Presidente Gorbatchov, logo após a sua eleição um ano antes e essa “corrente para frente” foi vital para que o mundo inteiro subitamente desabasse, ou pelo menos a vã glória daqueles que acreditavam piamente em tais construções sociológicas. Pela primeira vez (ou quase), os desastres não ocorriam apenas no “lado de lá”, o lado onde o desenvolvimento não ocorrera, o lado onde apenas aconteciam coisas más porque as pessoas não eram boas. Durante algumas semanas, a Europa saracoteava insegura com o balanço perigoso e incerto de uma nuvem tóxica nuclear e nunca como então o destino de todos dependia dos boletins dos institutos de meteorologia. A nuvem da central de Chernobyl, invisível a olho nu, ameaçara solidamente a sempiterna estabilidade ambiental do mundo civilizado e os ecologistas passaram de meros e incômodos grilos falantes para deuses do Olimpo ambiental, donos da verdade absoluta. O destino estava traçado; o mundo tinha que ser mais verde, derrubar o Muro de Berlim, dissipar o bloco soviético e dissolver a visão maniqueísta de “nós e eles”. O mundo passara agora a ser algo descartável nos objetos, nas emoções, e nas opiniões. Mas ameaçava ser livre e espalhar essa liberdade pelos quatro cantos, relativizando conceitos numa abertura intelectual que passara a reger os destinos da Humanidade.

 

Todo o acontecimento se enseja de uma ideia. Nessa catarse de acontecimentos, de abertura intelectual ou mudanças de paradigmas, como também sói dizer-se, muitas transformações na sociedade mundial pautaram novos comportamentos, redigindo novas formas de ideias na contínua evolução do pensamento humano e talvez poucos comportamentos tenham convergido de forma tão acentuada quanto o dos homossexuais e comunidades LGBT; de párias da sociedade, vivendo ocultamente à margem da natureza humana, excluídos até da visão biológica funcional da sociedade, passaram para um 3º ou até mesmo 4º gênero e, arrisco-me a dizer, quem sabe no futuro não venham a ser condição sine qua non para o comportamento social, como se de um rito de passagem se tratasse. Na redação do Contrato Social de Rousseau, o homem não era apenas eminentemente bom; ele também passava a ser sensorialmente diverso, embora sua alma se tornasse descartável.

 

Fazendo-se um retrospecto rápido da década de 80 do século XX até aos nossos dias, pode dizer-se, sem sombra de dúvidas nem risco de ser demagógico que houve deveras uma transformação social nítida proporcionada, por exemplo, pelas energias limpas e renováveis, como também se poderão constatar avanços sociais profundos promovidos pela estabilização das economias mundiais, com o fim da Guerra Fria. De uma forma geral, os governos das economias mais sólidas conseguiram consolidar juros mais baixos a longo prazo, estabilizar os índices de inflação e garantir uma conjuntura sólida para o crescimento continuado das suas economias. No caso de países emergentes, houve uma recuperação e o desenvolvimento consolidado a partir do momento em que estes países conseguiram controlar a inflação, permitindo o crescimento das suas economias domésticas, retomada de postos de trabalhos com a consequente a recuperação das famílias endividadas, etc. Mas, em alguns casos, o caminho também se trilhou pela marcha da violência e com o derramamento de sangue, em outros. A derrubada de vários ditadores no Oriente Médio trouxe, como consequência, o fim de uma certa hegemonia da paz, mesmo que recalcada com o recurso à opressão e violência étnicas, tendo pulverizado ódios e vinganças tribais, tão ancestrais quanto as suas raízes antropológicas. Outrora conhecida como Crescente Fértil, a região bíblica é hoje um crescente de violência, e o cenário pouco evoluiu desde os tempos abraâmicos. A morte violenta é uma constante da vida e os cenários fratricidas marcados diuturnamente por genocídios, estupros e chacinas de crianças, remetem-nos quase que inconscientemente aos tempos de Herodes, à Matança dos Inocentes, e aos tristes episódios da História por demais conhecidos. Uma vez mais, o mundo se balança novamente entre o “nós” e o “eles”, entre o “nosso lado” e o “outro lado”, o lado que se prefere manter na ignorância e no anonimato, apartando da nossa visão imaculada os retratos diários da dor e do infortúnio humanos. A vida reduziu-se a uma mera quimera estatística, sem rosto, sem grito, sem a voz dos excluídos bradando aos quatro ventos.

 

Modestamente, sinto orgulho por ter vivenciado tão profícuo momento da História. Prestes atualmente a completar 50 anos, vejo que passaram por mim ciclos completos do conhecimento humano, visões paradigmáticas que se foram esmorecendo e se apagando por completo ou mudando enviezadamente a consciência, a concepção do conhecimento que se tinha ou se acreditava que fosse. Da mecânica clássica e pesada de Newton, o universo hoje é uma engrenagem instável e incerta, no desassossego da física quântica, na volatilidade de conhecimentos metafísicos que se vão adquirindo e revogam tudo o que se conhecera antes sem, contudo, responder à primeva questão da nossa cosmogonia: “De onde viemos?”, nem à derradeira questão da nossa escatologia: “Para onde caminharemos?”. Vejo também que se extinguiram conceitos e modelos políticos tão enraizados que dir-se-iam perenes, personalidades que pareciam eternas. Morreram Fidel, David Bowie e Leonard Cohen, entre outros, só ficaram vivos os Rolling Stones de priscas eras. Mas talvez estes sejam mesmo eternos, como os diamantes.

 

Entrei na adolescência no exato momento em que emergia o boom da informática e vivenciei extáticos momentos e sensações que a geração atual jamais sentirá. Noites sem dormir na frente da tela de fósforo verde que quase queimava a visão, horas espremidas a fio escrevendo programas que depois se apagavam subitamente por um qualquer erro de comando, a torcida fervorosa para que um programa carregasse a partir de jurássicos toca-fitas, o som inconfundível da Internet quando conectava nas fantásticas conexões discadas, tudo isso é um passado arrebatador e passional que só poderá compreender quem realmente por ele passou.

 

Hoje, eu moro naquele que era “o outro lado” do planeta e acompanho o crescimento da minha filha Sophia que tem hoje a idade que eu tinha quando comecei a tomar consciência sobre a marcha da Humanidade. E a pergunta inevitável que se coloca é: que mundo deixarei eu para ela, que planeta na realidade quero que fique para ela? Impotente por não poder apagar a herança maldita que foi deixada pelas gerações que me antecederam, inconsciente sobre os rumos que as gerações trarão ao futuro, resta-me apenas alvitrar um presente contido nas minhas ações e que se reflita na geração atual, em prol da Humanidade. Como estará Sophia em 2058, quando fizer 50 anos? Que mundos se conhecerão então, que desenvolvimentos tecnológicos, que correntes e ideologias imperarão in illo tempore? Provavelmente, nessa altura, já terá contato com outras realidades que se mantêm por enquanto sob sigilo ou em seletiva divulgação, como é o caso de tecnologias mantidas a sete chaves, fruto de um trabalho conjunto com alienígenas que vivem entre nós ou que nos visitam, e cuja presença e intercâmbio com os seres humanos passará a ser mais comum, porém nem sempre pacífico, daqui a 30 a 50 anos. Se alguns se comunicarão bem com os seres humanos, transmitindo os seus conhecimentos para fins pacíficos, outros, porém, terão atitudes e comportamentos mais belicistas. Inegavelmente, não haverá mais como ocultar a sua existência e a sua presença entre nós.

 

Indubitavelmente, a Humanidade em que Sophia viverá nesse período desfrutará dos efeitos positivos facultados pelas tecnologias e energias limpas, como atualmente já se verifica, ainda que pontualmente. O emprego cada vez mais assíduo de uma tecnologia consciente com o recurso exclusivamente às energias renováveis, como energia eólica, hidráulica, solar, oceânica, etc., pautará o caminho da Humanidade, gerando novos postos de trabalhos, novas filosofias corporativas, novos dinamismos empresariais. Mesmo não sendo possível reverter os efeitos perniciosos da poluição, será possível definir-se um novo patamar de sustentabilidade para o planeta. E, num momento em que na atualidade tanto se discursa e se discute sobre o aquecimento global, sem contudo haver unanimidade esmagadora que o comprove ou o refute, avizinha-se para um período daqui a 30 ou 50 anos uma mini-era glaciar, como aquela que assolou uma parte do mundo no início do sec. XVII e o planeta passará a ser mais palatável para uns, principalmente para aqueles de zonas mais setentrionais que passarão a se ver favorecidos e, portanto, a dispor de melhores recursos econômicos, em virtude de melhores técnicas agrícolas.

 

Desde os meados do séc. XIX, o mundo é das máquinas e a natureza inteligente passou a reger o seu comportamento na interação homem-máquina; mas, nesse universo do Deus Ex-Machina, o modelo paradigmático não passará mais pelas pastilhas de silício nem apenas pelo emprego cada vez mais reiterado da nanotecnologia, mas sobretudo e de forma cada vez mais afincada pela utilização de processadores, placas e circuitos que empreguem tecidos cerebrais e estruturas neurotransmissoras replicadas de células humanas e de fluidos cerebrais, e que passarão a ter um raciocínio menos algorítmico e mais lógico e sensorial. O mundo de Sophia em 2058 terá máquinas que se comportarão e sentirão os comportamentos humanos como se de humanos se tratassem, fazendo uso de uma semiconsciência humana sensorial, no qual robôs serão parceiros emocionais e carnais de homens e mulheres e a comunicação entre seres humanos será mais hologramática e menos presencial. Haverá necessidade de se definir melhor os conceitos humanos puros, inerentes à consciência humana e ao princípio da vida, para diferenciar daqueles obtidos pelas máquinas, em face do assédio de tais “metralhadoras audiovisuais”.

 

Porém, como resquício dos consectários trazidos pela Revolução Industrial, esse mundo não será para todos e, nunca como antes, ficará tão demarcada a cisão social originada pela acessibilidade tecnológica, que não será para todos, demarcando-se assim o velho e secular diferendo do “nosso lado”, o lado do expoente tecnológico que facultará todas essas inovações, e do “outro lado”, o lado dos excluídos, daqueles que se manterão à margem do desenvolvimento e do conforto humano. Serão aqueles que, considerados analfabetos ou inválidos funcionais pela falta de acessibilidade às tecnologias e aos recursos de última geração, passarão a constituir uma nova massa de excluídos, de párias sociais, definindo, entre outros, enormes e avassaladores movimentos migratórios. Se, atualmente, estes movimentos se originam por conflitos bélicos, conflitos regionais, tribais ou de outra natureza política, futuramente passarão a ter como fundamento as condições climatéricas regionais. Se é verdade que o desenvolvimento humano concentrará as populações em torno de núcleos densamente urbanos cada vez mais complexos e sofisticados e cada vez mais tecnologicamente integrados, por outro lado, o crescente êxodo de áreas menos povoadas permitirá a recriação de biomas perdidos ou ameaçados com a reintrodução de espécies da fauna e flora nativas, através de programas seletivos de reprodução assistida. A par do que ocorre atualmente, áreas anteriormente isoladas por conta das mudanças climatéricas passarão a ter interesse do ponto de vista da exploração, como acontece atualmente no Atlântico Norte, e passarão a ser refúgio de outras espécies, animais e vegetais, constituindo-se também em reservas de alimentos para a Humanidade. No entanto, o impacto produzido pela concentração de seres humanos continuará a afetar e a pressionar as demais áreas, no balanço da disponibilidade de recursos. Mantém-se a insidiosa equação da oferta escassa de recursos contra a demanda crescente pelos seres humanos, no confronto de ideias do que postulava Malthus e do que contrapunha Josué de Castro. O comportamento do planeta Terra é holístico e abrangente, encontra-se intimamente integrado em todas as suas vertentes: geológica, biológica, atmosférica, etc., formando um intricado e complexo sistema que interage em todas as suas facetas. Isso levará sempre a cataclismos naturais provocados, entre outras coisas, pela própria ação do Homem na busca de áreas para alimentação, o impacto sobre intempéries, inundações, secas, etc. e, nesse período de 50 anos, comportará em uma série de eventos que deslocarão milhões de pessoas, deslocadas das suas áreas de residência não mais apenas pela necessidade de alimentos, mas, sobretudo, por que simplesmente não disporão mais das suas casas nem cidades.

 

Esse será muito provavelmente o mundo de Sophia, um planeta em perpétua mutação, trazida pelos acontecimentos atuais, mas mergulhado em novos desafios epistemológicos, onde o impacto provocado por movimentos migratórios acompanhará novas realidades políticas e sociológicas, com a expansão dos povos africanos e da Ásia Central, a queda na hegemonia econômica dos tigres asiáticos, a cisão entre os povos muçulmanos, fruto mormente de correntes ateístas que promoverão um “Iluminismo Semita” daqui a cerca de 40 anos, que também se estenderá aos Judeus, além de todas as transformações impulsionadas pela amálgama de conhecimentos tecnológicos, cambiantes climáticas cujo impacto será profundo nas áreas mais equatoriais. Talvez, então, a Sophia possa ela própria fazer o balanço da sua vida...

 

 
Mariano Mendonça Lopes