UM
PLANETA PARA SOPHIA
Quando eu era criança, o meu mundo era mais mundo.
Inebriados na atmosfera maniqueísta do “nós e eles”, respirava-se o gélido ar
da Guerra Fria, conscientes de que “nós” éramos os bons e “eles” eram os vilões,
pouco importava o lado do jogo ou da batalha em que se estivesse. Não havia 50
tons de cinza nem de qualquer coisa para matizar o jogo do cenário político e
geoestratégico. As coisas eram polarizadas no eixo entre EUA e União Soviética,
dividido pelo Muro de Berlim, e no diferendo Norte-Sul onde o Hemisfério Norte
era o rico e desenvolvido mundo dos brancos e nem tão brancos assim, enquanto o
Hemisfério Sul representava o subdesenvolvimento, a fome e a miséria das demais
raças e cores. Almejava-se uma certa estabilização social, volvidos os tempos
conturbados da Segunda Guerra Mundial e da reconstrução da Europa, e parecia
que tudo estava bem assim na mecânica determinista de um Universo pesado e
previsível, marchando indelevelmente no compasso programado da evolução humana.
No mundo em que havia o nosso lado e o lado dos
outros, um lado ao qual raramente se acedia e nem se queria chegar lá, o preço
a pagar por essa evolução humana tão cortejada era debitado do lado de lá, num
lado em que apenas constavam os que não tinham lado nem voz e onde se poderiam
verter despudoradamente os subprodutos da nossa consciência e do nosso
progresso. Não havia ainda consciência ambiental e a poluição era apenas e
tão-só o fruto da evolução num sabor pouco palatável que surgira com a
Revolução Industrial e que subitamente nos passara do estado selvagem e
selvático para a condição superior da raça humana. A nós, e não a eles... Uma
nova consciência, porém, emergia na voz dos ecologistas, bizarras e exóticas
personagens, cujo comportamento peculiar remetia mais a um Woodstock em fim de
festa do que a um novo perfil político. No clamor da recém-criada casta dos
ecologistas, o nosso mundo, essa epopeia do desenvolvimento humano que se
narrava como se de uma écloga se tratasse, perigava a destruição e a exaustão
dos mananciais e recursos naturais, caso nada fosse feito, e a reserva de vida e
de ar puro poderia doravante apenas circunscrever-se ao “outro lado”, àquele
lado que tanto se desvalorizava por nele não estarem presentes as sementes do
progresso. Não havia ainda 50 tons de cinza, mas apenas diferentes cambiantes
de poluição, pelo que começou uma corrida maluca por novas fontes de energia,
limpas e renováveis, corrida que se acelerou quando os países da todo-poderosa
OPEP, a Organização dos Países Produtores de Petróleo, resolveram radicalizar,
promovendo o corte da produção para aumentar o preço. Corria o ano de 1973 de
uma década marcada por convulsões políticas e sociais um pouco por todo o
mundo. Apesar disso, não era o mundo descartável da atualidade e as coisas
ainda se faziam para durarem.
Ainda se ouvia de margens plácidas bradar a voz
profética e melodramática de alguns arautos do progresso puro, invocando a
perda da qualidade de vida e o aumento do custo de produtos básicos decorrente
dessa busca por energias limpas, alimentos limpos, combustíveis limpos, etc.,
quando se deu o desastre de Chernobyl, em 1986. O ambiente pesado e soturno da
então União Soviética transparecia na glasnost
e na perestroika promovidas pelo
então novo Presidente Gorbatchov, logo após a sua eleição um ano antes e essa “corrente
para frente” foi vital para que o mundo inteiro subitamente desabasse, ou pelo
menos a vã glória daqueles que acreditavam piamente em tais construções
sociológicas. Pela primeira vez (ou quase), os desastres não ocorriam apenas no
“lado de lá”, o lado onde o desenvolvimento não ocorrera, o lado onde apenas
aconteciam coisas más porque as pessoas não eram boas. Durante algumas semanas,
a Europa saracoteava insegura com o balanço perigoso e incerto de uma nuvem
tóxica nuclear e nunca como então o destino de todos dependia dos boletins dos
institutos de meteorologia. A nuvem da central de Chernobyl, invisível a olho
nu, ameaçara solidamente a sempiterna estabilidade ambiental do mundo
civilizado e os ecologistas passaram de meros e incômodos grilos falantes para
deuses do Olimpo ambiental, donos da verdade absoluta. O destino estava
traçado; o mundo tinha que ser mais verde, derrubar o Muro de Berlim, dissipar
o bloco soviético e dissolver a visão maniqueísta de “nós e eles”. O mundo
passara agora a ser algo descartável nos objetos, nas emoções, e nas opiniões.
Mas ameaçava ser livre e espalhar essa liberdade pelos quatro cantos,
relativizando conceitos numa abertura intelectual que passara a reger os
destinos da Humanidade.
Todo o acontecimento se enseja de uma ideia. Nessa
catarse de acontecimentos, de abertura intelectual ou mudanças de paradigmas,
como também sói dizer-se, muitas transformações na sociedade mundial pautaram
novos comportamentos, redigindo novas formas de ideias na contínua evolução do
pensamento humano e talvez poucos comportamentos tenham convergido de forma tão
acentuada quanto o dos homossexuais e comunidades LGBT; de párias da sociedade,
vivendo ocultamente à margem da natureza humana, excluídos até da visão
biológica funcional da sociedade, passaram para um 3º ou até mesmo 4º gênero e,
arrisco-me a dizer, quem sabe no futuro não venham a ser condição sine qua non para o comportamento
social, como se de um rito de passagem se tratasse. Na redação do Contrato
Social de Rousseau, o homem não era apenas eminentemente bom; ele também passava
a ser sensorialmente diverso, embora sua alma se tornasse descartável.
Fazendo-se um retrospecto rápido da década de 80 do
século XX até aos nossos dias, pode dizer-se, sem sombra de dúvidas nem risco
de ser demagógico que houve deveras uma transformação social nítida
proporcionada, por exemplo, pelas energias limpas e renováveis, como também se poderão
constatar avanços sociais profundos promovidos pela estabilização das economias
mundiais, com o fim da Guerra Fria. De uma forma geral, os governos das
economias mais sólidas conseguiram consolidar juros mais baixos a longo prazo,
estabilizar os índices de inflação e garantir uma conjuntura sólida para o
crescimento continuado das suas economias. No caso de países emergentes, houve
uma recuperação e o desenvolvimento consolidado a partir do momento em que
estes países conseguiram controlar a inflação, permitindo o crescimento das
suas economias domésticas, retomada de postos de trabalhos com a consequente a
recuperação das famílias endividadas, etc. Mas, em alguns casos, o caminho também
se trilhou pela marcha da violência e com o derramamento de sangue, em outros.
A derrubada de vários ditadores no Oriente Médio trouxe, como consequência, o
fim de uma certa hegemonia da paz, mesmo que recalcada com o recurso à opressão
e violência étnicas, tendo pulverizado ódios e vinganças tribais, tão
ancestrais quanto as suas raízes antropológicas. Outrora conhecida como
Crescente Fértil, a região bíblica é hoje um crescente de violência, e o
cenário pouco evoluiu desde os tempos abraâmicos. A morte violenta é uma
constante da vida e os cenários fratricidas marcados diuturnamente por
genocídios, estupros e chacinas de crianças, remetem-nos quase que
inconscientemente aos tempos de Herodes, à Matança dos Inocentes, e aos tristes
episódios da História por demais conhecidos. Uma vez mais, o mundo se balança
novamente entre o “nós” e o “eles”, entre o “nosso lado” e o “outro lado”, o
lado que se prefere manter na ignorância e no anonimato, apartando da nossa
visão imaculada os retratos diários da dor e do infortúnio humanos. A vida
reduziu-se a uma mera quimera estatística, sem rosto, sem grito, sem a voz dos
excluídos bradando aos quatro ventos.
Modestamente, sinto orgulho por ter vivenciado tão
profícuo momento da História. Prestes atualmente a completar 50 anos, vejo que
passaram por mim ciclos completos do conhecimento humano, visões paradigmáticas
que se foram esmorecendo e se apagando por completo ou mudando enviezadamente a
consciência, a concepção do conhecimento que se tinha ou se acreditava que
fosse. Da mecânica clássica e pesada de Newton, o universo hoje é uma engrenagem
instável e incerta, no desassossego da física quântica, na volatilidade de
conhecimentos metafísicos que se vão adquirindo e revogam tudo o que se
conhecera antes sem, contudo, responder à primeva questão da nossa cosmogonia:
“De onde viemos?”, nem à derradeira questão da nossa escatologia: “Para onde
caminharemos?”. Vejo também que se extinguiram conceitos e modelos políticos
tão enraizados que dir-se-iam perenes, personalidades que pareciam eternas.
Morreram Fidel, David Bowie e Leonard Cohen, entre outros, só ficaram vivos os
Rolling Stones de priscas eras. Mas talvez estes sejam mesmo eternos, como os
diamantes.
Entrei na adolescência no exato momento em que
emergia o boom da informática e
vivenciei extáticos momentos e sensações que a geração atual jamais sentirá.
Noites sem dormir na frente da tela de fósforo verde que quase queimava a
visão, horas espremidas a fio escrevendo programas que depois se apagavam
subitamente por um qualquer erro de comando, a torcida fervorosa para que um
programa carregasse a partir de jurássicos toca-fitas, o som inconfundível da
Internet quando conectava nas fantásticas conexões discadas, tudo isso é um
passado arrebatador e passional que só poderá compreender quem realmente por
ele passou.
Hoje, eu moro naquele que era “o outro lado” do
planeta e acompanho o crescimento da minha filha Sophia que tem hoje a idade
que eu tinha quando comecei a tomar consciência sobre a marcha da Humanidade. E
a pergunta inevitável que se coloca é: que mundo deixarei eu para ela, que
planeta na realidade quero que fique para ela? Impotente por não poder apagar a
herança maldita que foi deixada pelas gerações que me antecederam, inconsciente
sobre os rumos que as gerações trarão ao futuro, resta-me apenas alvitrar um
presente contido nas minhas ações e que se reflita na geração atual, em prol da
Humanidade. Como estará Sophia em 2058, quando fizer 50 anos? Que mundos se
conhecerão então, que desenvolvimentos tecnológicos, que correntes e ideologias
imperarão in illo tempore?
Provavelmente, nessa altura, já terá contato com outras realidades que se
mantêm por enquanto sob sigilo ou em seletiva divulgação, como é o caso de
tecnologias mantidas a sete chaves, fruto de um trabalho conjunto com
alienígenas que vivem entre nós ou que nos visitam, e cuja presença e
intercâmbio com os seres humanos passará a ser mais comum, porém nem sempre
pacífico, daqui a 30 a 50 anos. Se alguns se comunicarão bem com os seres
humanos, transmitindo os seus conhecimentos para fins pacíficos, outros, porém,
terão atitudes e comportamentos mais belicistas. Inegavelmente, não haverá mais
como ocultar a sua existência e a sua presença entre nós.
Indubitavelmente, a Humanidade em que Sophia viverá
nesse período desfrutará dos efeitos positivos facultados pelas tecnologias e
energias limpas, como atualmente já se verifica, ainda que pontualmente. O
emprego cada vez mais assíduo de uma tecnologia consciente com o recurso
exclusivamente às energias renováveis, como energia eólica, hidráulica, solar,
oceânica, etc., pautará o caminho da Humanidade, gerando novos postos de
trabalhos, novas filosofias corporativas, novos dinamismos empresariais. Mesmo
não sendo possível reverter os efeitos perniciosos da poluição, será possível
definir-se um novo patamar de sustentabilidade para o planeta. E, num momento
em que na atualidade tanto se discursa e se discute sobre o aquecimento global,
sem contudo haver unanimidade esmagadora que o comprove ou o refute,
avizinha-se para um período daqui a 30 ou 50 anos uma mini-era glaciar, como
aquela que assolou uma parte do mundo no início do sec. XVII e o planeta
passará a ser mais palatável para uns, principalmente para aqueles de zonas
mais setentrionais que passarão a se ver favorecidos e, portanto, a dispor de
melhores recursos econômicos, em virtude de melhores técnicas agrícolas.
Desde os meados do séc. XIX, o mundo é das máquinas
e a natureza inteligente passou a reger o seu comportamento na interação
homem-máquina; mas, nesse universo do Deus
Ex-Machina, o modelo paradigmático não passará mais pelas pastilhas de
silício nem apenas pelo emprego cada vez mais reiterado da nanotecnologia, mas
sobretudo e de forma cada vez mais afincada pela utilização de processadores,
placas e circuitos que empreguem tecidos cerebrais e estruturas
neurotransmissoras replicadas de células humanas e de fluidos cerebrais, e que
passarão a ter um raciocínio menos algorítmico e mais lógico e sensorial. O
mundo de Sophia em 2058 terá máquinas que se comportarão e sentirão os
comportamentos humanos como se de humanos se tratassem, fazendo uso de uma semiconsciência
humana sensorial, no qual robôs serão parceiros emocionais e carnais de homens
e mulheres e a comunicação entre seres humanos será mais hologramática e menos
presencial. Haverá necessidade de se definir melhor os conceitos humanos puros,
inerentes à consciência humana e ao princípio da vida, para diferenciar daqueles
obtidos pelas máquinas, em face do assédio de tais “metralhadoras
audiovisuais”.
Porém, como resquício dos consectários trazidos
pela Revolução Industrial, esse mundo não será para todos e, nunca como antes,
ficará tão demarcada a cisão social originada pela acessibilidade tecnológica,
que não será para todos, demarcando-se assim o velho e secular diferendo do
“nosso lado”, o lado do expoente tecnológico que facultará todas essas
inovações, e do “outro lado”, o lado dos excluídos, daqueles que se manterão à
margem do desenvolvimento e do conforto humano. Serão aqueles que, considerados
analfabetos ou inválidos funcionais pela falta de acessibilidade às tecnologias
e aos recursos de última geração, passarão a constituir uma nova massa de
excluídos, de párias sociais, definindo, entre outros, enormes e avassaladores
movimentos migratórios. Se, atualmente, estes movimentos se originam por
conflitos bélicos, conflitos regionais, tribais ou de outra natureza política,
futuramente passarão a ter como fundamento as condições climatéricas regionais.
Se é verdade que o desenvolvimento humano concentrará as populações em torno de
núcleos densamente urbanos cada vez mais complexos e sofisticados e cada vez mais
tecnologicamente integrados, por outro lado, o crescente êxodo de áreas menos
povoadas permitirá a recriação de biomas perdidos ou ameaçados com a
reintrodução de espécies da fauna e flora nativas, através de programas
seletivos de reprodução assistida. A par do que ocorre atualmente, áreas
anteriormente isoladas por conta das mudanças climatéricas passarão a ter
interesse do ponto de vista da exploração, como acontece atualmente no
Atlântico Norte, e passarão a ser refúgio de outras espécies, animais e
vegetais, constituindo-se também em reservas de alimentos para a Humanidade. No
entanto, o impacto produzido pela concentração de seres humanos continuará a
afetar e a pressionar as demais áreas, no balanço da disponibilidade de
recursos. Mantém-se a insidiosa equação da oferta escassa de recursos contra a
demanda crescente pelos seres humanos, no confronto de ideias do que postulava
Malthus e do que contrapunha Josué de Castro. O comportamento do planeta Terra
é holístico e abrangente, encontra-se intimamente integrado em todas as suas
vertentes: geológica, biológica, atmosférica, etc., formando um intricado e
complexo sistema que interage em todas as suas facetas. Isso levará sempre a
cataclismos naturais provocados, entre outras coisas, pela própria ação do
Homem na busca de áreas para alimentação, o impacto sobre intempéries,
inundações, secas, etc. e, nesse período de 50 anos, comportará em uma série de
eventos que deslocarão milhões de pessoas, deslocadas das suas áreas de
residência não mais apenas pela necessidade de alimentos, mas, sobretudo, por
que simplesmente não disporão mais das suas casas nem cidades.
Esse será muito provavelmente o mundo de Sophia, um
planeta em perpétua mutação, trazida pelos acontecimentos atuais, mas mergulhado
em novos desafios epistemológicos, onde o impacto provocado por movimentos
migratórios acompanhará novas realidades políticas e sociológicas, com a
expansão dos povos africanos e da Ásia Central, a queda na hegemonia econômica dos
tigres asiáticos, a cisão entre os povos muçulmanos, fruto mormente de
correntes ateístas que promoverão um “Iluminismo Semita” daqui a cerca de 40
anos, que também se estenderá aos Judeus, além de todas as transformações
impulsionadas pela amálgama de conhecimentos tecnológicos, cambiantes
climáticas cujo impacto será profundo nas áreas mais equatoriais. Talvez,
então, a Sophia possa ela própria fazer o balanço da sua vida...
Mariano Mendonça Lopes