quinta-feira, 25 de julho de 2019

Prosa

A minha vida é um cais de eternas partidas, amizades ausentes que se despedem na flor da alegria e da descoberta, rostos que se esvaem quando figura neles um olhar de esperança, de amor quiçá; a minha vida é um rosto vencido na multidão, o mundo passa e eu me afasto, parece que tudo vai, que tudo sai, que tudo cai. A minha vida tem um quê de rocambolesco; tudo acontece dentro de uma determinada linha, contudo nada acontece que possa sair, se imiscuir da mundanidade, aviltada condição de ser igual a todos os outros e, contudo, não se parecer com nenhum. Vejo a luz ao fundo, mas não vejo o túnel. E olho, como se procurasse a máscara para me fazer de personagem, como se buscasse o retrato para fazer a pose, como se atirasse o barro sonhando encontrar a parede. Parece que os polos se inverteram, parece que os papeis se inverteram, parece que tudo caiu ou então se ausentou para parte incerta. E vejo, como nos demais capítulos da minha vida, um final infeliz, feito de contrastes, feito de um não sei o quê de ganhar o mundo e me perder de amores, de encher o mundo e me acabar sozinho por becos e vielas, travessas e travessuras, acabado no porto, aeroporto ou eu sei lá o quê. Como todo o navio que parte, a minha vida é um cais de despedidas e partidos corações.

 
No meu coração de criança, há barquinhos de papel que vogam placidamente pelas águas do lago, que transportam em sua frágil condição sonhos robustos que hão de alcançar o mundo. Cada barquinho de papel é um sonho que a vida me deixou, que o meu eu desejou. No meu coração de criança, há um porto que nunca me abandonou...


MARIANO MENDONÇA LOPES [Texto extraído da minha obra, Impressões do Mar]

Poema - É na sombra do mar

 
É na sombra do mar
Que me deixo adormecer
Neste meu jeito de sonhar,
Ser a vida um leve entardecer.
 
É no sonho que eu acordo tarde
No segredo deixado da tempestade,
Na vela que singra, na vela que arde,
Meu corpo é um copo de saudade
 
Que se derrama pelo caminho
E vai, trôpego, tropeçando.
Ao mundo, abro os braços, sozinho,
Redimindo-me do que vou confessando.
 
É no rosto vazio que eu vou completar
A minha sede de viver e de cultura.
No mundo que é uma praia de sonhar,
Na maré vazia que se enche de secura.
 
É às falésias que me vou confessar,
Erros perdidos que a vida já esqueceu
Mas se fincam na alma, ah, eterno passar
Dos sentimentos que o tempo teceu.
E, porque não, morrer na onda do mar,
Marulhar, o murmúrio enfraqueceu.
Amar, o mundo fica só no olhar
Quando, no mar, o meu ego adormeceu.


MARIANO MENDONÇA LOPES 
[Poema extraído da minha obra, Impressões do Mar]

Poema - Tu és o outro lado de mim

Tu és o outro lado de mim,
O lado selvagem que me domina,
Um ser tudo e mergulhar vazio

Nascer selvagem e, assim,
Ter inconsciência do lado oculto da rotina
Que acaba inconsciente de desafio.
 
Tu és eu ser outro lado mais
Quando há impercepção de existir,
Fugir dum lado e acabar por sentir
O covil enclausurado dos animais.
 
Quando estás em mim e eu não sei,
Descortino logo essa tua lembrança,
Ser eu como parto, como outra criança,
E nascer de ti pelos lábios que decifrei.

És o lado oculto que me fascina
Quando descubro que me és imaginação,
Ser para ti uma evocação que se ensina
E é docente o sábio por vocação.

Tu és eu estar em todo o lado
O passado que me guia no escuro,
Passo a passo, um candelabro de vidas,

O passo da história é um passo apagado,
O outro lado do passado é o futuro
Numa cortina de memórias refletidas.
 
És o meu hiper-espaço nesta dimensão,
O não-ser que existe e pensa
No saber está sempre a maior recompensa
Que o achado traz por bem à razão.
 
Tu és sempre eu ser de modo diferente,
Assim vivo, assim penso e vou seguindo.
No dia a dia, uma impressão indulgente
Sorrir em mim como o sol que vou descobrindo.

Faz de mim instrumento da minha vontade
Como eu acabaria sempre por encontrar
Na paisagem sedutora o último luar
Trazido nos ombros pela via da universalidade.


MARIANO MENDONÇA LOPES 
[Poema extraído da minha obra, Impressões do Mar]

Poema - Alma minha que partiste


Alma minha que partiste
Na ilusão desenfreada
E que em mim resiste
Como uma visão apaixonada
 
Dos mais loucos desvarios
De lídimos sentimentos,
Tao lúgubres quanto fugidios,
Retratos de momentos.
 
No meu peito, ainda inflama
A intrépida rebeldia
Que se ergue, violenta chama,
 
De uma raiva, pura e sadia,
Que na alma se derrama
E se perpetua na poesia


MARIANO MENDONÇA LOPES

Poema - Utopias

                                                                UTOPIAS

 
Na alquimia da vida,
O gosto indelével pela vontade
Que há de ser uma partida
No alcance absoluto da liberdade.
 
É a verdade que me liberta
Nos braços estendidos da paz,
O destino da palavra certa
Que nos augúrios da vida se faz.
 
O grito é a mancha na paisagem
Que contempla a emoção,
Que arrasta a jubilosa esperança
 
De sonhar a utópica viagem
Muito além da imaginação
E que só no sonho se alcança.


MARIANO MENDONÇA LOPES

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Crónica - A História da Minha Vida


A HISTÓRIA DA MINHA VIDA

 
Completo nestes dias mais um ano de vida; sem grandes alardes nem grandes mistérios, sem queixumes nem azedumes, deixo o tempo passar como a areia que escorre entre os dedos, consciente de que já vi muito tempo passar, mas parece que tudo começou ontem...

 
Não me lamento da idade passar; assumo apenas que trago no corpo as marcas de uma vida intensa, aportando na minha mente a experiência vívida e vivida de várias décadas para final me aperceber de que, de uma certa maneira, me tornei testemunha da História. Procuro não fazer juízos de valor porque a vida me ensinou a valorizar mais e a julgar menos; afinal, os percalços que tive na vida, os acontecimentos de que fui testemunha, a minha própria narrativa me ensinaram que às vezes é bom andar devagar para poder caminhar distante.  Nasci num continente, cresci em outro e atualmente vivo num terceiro continente; hoje sou estrangeiro na terra onde nasci e, na terra onde vivo, sou equiparado aos cidadãos natos. Andei pelos cinco continente; pelo caminho, fui conhecendo culturas tão distantes quanto diversas. Dei praticamente uma volta ao mundo, e aprendi que há um pouco de tudo nos diferentes países por onde andei, nas diferentes comunidades que conheci, mas que afinal não somos tão diferentes quanto as nossas diferenças nos parecem fazer crer à primeira vista. Que a dor de viver é também a dor de amar, que a felicidade é eterna mas a alegria é volátil, um sentimento tão intenso quanto fugaz, e que é preciso viver hoje como se apenas tivéssemos o hoje, porque pode ser que efetivamente não haja amanhã, como não o houve para tantas vítimas de acidentes, de sismos, de violências...

 
Nasci no Verão do Amor daquele julho de 1967, da era dos sonhos loucos desmedidos da juventude de então, da filosofia hippie de vida do “paz e amor” com muito amor livre e sentimentos zen, mas vivi alguns dos piores conflitos pós 1945. Não me recordo do dia em que o Homem chegou à Lua, mas vibrei com todos os passeios dos ônibus espaciais, as conquistas do Espaço e as descobertas da Ciência, a aventura da informática e da tecnologia revolucionando as nossas vidas e mudando os nossos conceitos. Senti as agruras de uma guerra na terra onde nasci que culminou na destruição de tantos sonhos e ceifou várias vidas, acompanhei os tempos intrépidos da Guerra Fria e a ameaça que sobre nós pairava de uma guerra nuclear, o treinamento no caso de um ataque nuclear, estocar comida, água e pilhas e fugir para abrigos ao som da sirene, a queda do Muro de Berlim, o gingado perigoso da nuvem nuclear de Chernobyl deslizando sobre a Europa, o fim da era soviética e a pulverização do ódio entre as minorias, o início do sonho da União Europeia, o ressurgimento dos nacionalismos europeus e as limpezas étnicas na Jugoslávia, guerras entre judeus e palestinos, entre iranianos e iraquianos, entre aliados dos EUA e Sadam Hussein, a Tempestade no Deserto, a violência recrudescida saída da Primavera Árabe, Talibãs e Estado Islâmico, o 11 de setembro e as Torres Gêmeas e Osama Bin Laden, os tanques parados por um homem solitário na Praça de Tiananmen...

 
Assisti ao fim de tantas coisas e ao começo de tantas outras, sonhos que ficaram, que se desvaneceram, projetos que não vingaram, esperanças que não morreram... Assim foi em Copas do Mundo perdidas, nas Olimpíadas sem memória, mas também assim o foi nas esperanças de paz para o Oriente Médio, para o fim da fome em África cantando “We Are The World”, para o fim de guerras tribais pelos senhores da guerra na Somália e no Sudão, para o começo de um planeta melhor, mais verde e menos poluído, as lutas travadas pelo Greenpeace contra os países que caçavam baleias ou que poluíam os mares; eram os tempos em que se apregoava o verde dos ecologistas e mal sabíamos nós que os plásticos se tornariam uma praga maior que o petróleo... Nestes tantos anos de vida, aprendi que a dor de mãe se conjuga da mesma forma sofrida em todos os idiomas, sob todas as bandeiras, indistintamente do credo ou da religião, que Josué de Castro estava mais certo que Thomas Malthus e que Einstein foi mais longe do que qualquer outro cientista. Tive a oportunidade de vivenciar o mundo velho saído da Guerra Fria pautando as coisas que se julgavam configuradas ad eternum num arranjo maniqueísta dos “nós” contra os “eles” para um mundo onde nada mais é regularmente dividido ou classificado e onde o inimigo é anônimo. Passei do mundo que era mecanicamente determinista para o mundo quântico das incertezas; do mundo de sociedades clássicas e tradicionais moldadas em comportamentos inocentes para um mundo vigiado e controlado por máquinas de reconhecimento facial, previsto pelo Big Brother de George Orwell...

 
Na vida, não tive tudo o que queria viver, mas vivi tudo o que tive da vida. Talvez ainda me reste para viver o mesmo tempo de vida que já vivi, ou apenas mais alguns meses, dias ou horas. Quem sabe o quanto irei viver? O que importa é que procurei fazer de cada instante o ato derradeiro no teatro da vida, e em cada olhar, procurei enxergar além do horizonte o sonho que o Universo me concedeu e que todos os dias procuro agradecer. A minha vida foi a Estrada por onde caminhei e onde tantas coisas aprendi, ainda que muitas outras se tenham perdido pelo caminho. O que levo comigo são os momentos que vivi e os conhecimentos que adquiri como acervo de vida. O que ficou para trás foi o pó cósmico de onde vim e para onde voltarei.

 
MARIANO MENDONÇA LOPES

terça-feira, 9 de julho de 2019

Prosa


A Costa dos Esqueletos estende-se por aproximadamente mil quilômetros entre o sul de Angola e o norte da África do Sul, entre os rios Cunene ainda em Angola e o Rio Swakop, na Namíbia. Deve o seu nome não só aos imensos esqueletos de navios que soçobraram em tão medonha parte do mundo, como também aos diversos pescadores que se aventuraram, afoita e insanamente, e às tripulações perdidas e estraçalhadas após os naufrágios. A costa caracteriza-se essencialmente por ser móvel e em permanente deslocamento. As dunas sucedem-se na costa e afundam no oceano, erguem-se do leito atlântico penetrando a orla, em permanente construção e destruição. Onde hoje é praia, amanhã o oceano vai resgatar a sua parte. Onde hoje o navio ancora, amanhã poderá amanhecer em plenas dunas, cercado por um areal imenso onde o olhar morre e o pesadelo ainda nem começou; ladeado pela morte e pelos nevoeiros tenebrosos, os chamados cassimbos pela população nativa, resultado do ressurgimento da corrente fria de Benguela que assola em boa parte do ano. Já em terrenos transfronteiriços, é propriedade privada, dos olhares e da cobiça, por se tratar de área de produção de diamantes, tão abundantes que se poderia construir um castelo na areia e sentir aflorando nos dedos a pontiaguda riqueza dos diamantes brutos. Não tão brutos, porém, quanto o cano da arma que silencia a intrepidez alheia de quem ousar enxergar, que dirá então penetrar, tão agourenta propriedade para cobiçar o que seu não é.

 
Quando o diabo está à solta, as almas não têm escolha. Nessa parte do planeta, vive melhor quem já morreu e apenas contempla espetros. Aquele que observa os esqueletos, bem poderá amanhã ser ele o objeto de tão abjeta visão, alimentando a dor e o sofrimento do que padece em tão vil condição as derradeiras horas da sua malfadada existência. Os bosquímanos chamam-na de “terra feita sob a ira de deus” e aos olhos dos navegadores portugueses era apenas e tão só as Portas do Inferno.

MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Poema - No Meu Poema


No meu Poema [para Karina]

 

No meu poema,

Existe o som do piano que me seduz

De uma vida que transporta melodia,

Os acordes que o teu corpo me conduz

Para viver intenso a tua magia.

 

No meu poema,

Existe um amor profundo e inato

De desejar-te a cada dia,

O sentido nobre, puro e exato,

Uma vida a dois em perpétua poesia.

 

No meu poema,

Existem versos meus para compor

Existe a paixão intensa de viver,

Um laço eterno chamado amor

Abrir os braços e então saber

Como é a magia que me ilumina,

Viver nos braços eternos de Karina.

 

MARIANO MENDONÇA LOPES 

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Prosa


“Ouço a tua voz e a minha alma se exulta; os meus passos seguem o teu olhar, a expressão do teu rosto, as marcas da tua felicidade que se identificam com a minha vida, com o meu presente. Delicio-me ao pensar que o tempo nos achou num acaso da vida, numa esquina do mundo, caminhando os passos perdidos dos outros e que em nós fizeram sentido. E que tudo o mais foi um recordar de tempos passados, antevendo tempos futuros e que o nosso sentimento nos possui, nos arrebata, e nos constrói. Vivemos pelo tempo num momento sem fim, até ao fim dos tempos sem passado nem futuro, apenas o existir no instante, apenas o hoje, sem limites, sem imposições, sem negações. Nunca haverá distância neste mundo para apartar os nossos sentimentos e o que sentimos um pelo outro. Somos o que queremos ser, e assim seremos até nos reencontrarmos, como Pedro e Inez, numa qualquer vereda da vida, alimentados pelo desejo do reencontro, vivificados pelos olhares singelos que trocamos e que são um acervo de felicidade, um álbum de momentos únicos”.

 
Não vive um amor que é só. Compartilhar a grandeza do universo traz à alma a dimensão gigantesca do que há à nossa volta e deve ser comungado com outros para que frutifique, para que se expanda. A alegria da vida é a alegria do amor que surge e ressurge em cada um de nós trazendo a dimensão exata das coisas que desejamos, das viagens que fazemos, das experiências que vivemos, e que repartimos com aquele que se corresponde com a nossa imagem do mundo, com o nosso diálogo com o Real, com as fantasias que nos alimentam e nos movem pelos espaços, como se fossem universos de felicidade no nosso pequeno mundo. Não é nosso um amor que se quer nosso, porque o amor não se tem por objeto de posse, pois que possuí-lo não poderemos nunca. O amor é um estado da alma, uma transcendência do destino que se manifesta em nós, mas que existe à revelia da nossa propriedade, e que desponta nos nossos sentidos, revelando-se muito além das nossas condições físicas de posse.


MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra, As Faces de Maya]

Poema - Rouxinol à Janela

Rouxinol à Janela
 
Há uma janela aberta de par em par
Por onde a luz entra à vontade,
Como se fosse um hino à liberdade
E que só a ela se deixa entrar.
 
Há uma janela aberta de par em par
Que traz algo que me ilumina,
Saber que não se aprende nem ensina
Mas que se tem por íntimo sonhar.
 
Vejo irromperem os raios de sol
Quais fúlgidas centelhas à janela
Onde ouço, como se fosse sentinela,
O canto majestoso do rouxinol.
 
Resgato os sonhos que deixei em criança
Numa perpétua viagem à imaginação
De um saber que não se tem nem noção
De imaginar o que não se alcança.
 
Um saber que não se acha nem procura
E que está no mais profundo ser,
Fonte em que eternamente se vem beber
O que há de mais puro na alma pura.
 
Um saber que nos anima e liberta
Como um raio de luz que dá vida
À vida que se encontra desprovida
E que só vive quando a janela aberta
 
Se abre deveras de par em par
Como um sonho lindo e perfeito
Onde vai repousar, no parapeito,
Um rouxinol que se põe a cantar.
 
Há uma janela aberta de par em par
Onde os sonhos fluem livremente,
Onde a vida existe simplesmente
Quando o rouxinol se põe a cantar.
 
A janela se abre à eternidade
Como um livro se revela ao mistério
E o sonho é um saber etéreo
Que desponta na liberdade.

 

MARIANO MENDONÇA LOPES

 

Poema - Vaga

Vaga
Vagarosamente
A vaga
Pela minha mente.
 
O brilho que ela tem
Que ela sabe como ninguém
Atrair deliciosamente,
Não é nada, não é gente,
Vagarosamente vai bem,
Na minha mente, vai e vem.
 
Vaga,
Melancolicamente,
A vaga pela minha mente.
Não traz fraga,
Nem rochedo nem cabo temente.
Só traz vaga
E solitariamente
Uma vaga
À minha mente.
 
MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra, Impressões do Mar]

Prosa


Um dia, eu vou morrer, soçobrado pelos anos acumulados, pelas doenças mal curadas, pelos sintomas mal sentidos. Mas que fique em mim um álbum intensamente vivido de emoções e sensações, de experiências inusitadas e de momentos plenamente preenchidos, vívidas e satisfeitas vontades em conhecer o sempre novo, sempre curioso, tenazmente corajoso. Que eu possa então regozijar-me pelos instantes sentidos, passados e vividos, deixados na alvorada das coisas belas e esplendorosas, de um perfeito conhecimento de fato, por ter estado aqui, por ter amado ali, por ter conhecido além; que eu possa então arvorar a causa da minha sabedoria, levantar o padrão dos meus conhecimentos, erguer convicto o lábaro das minhas opiniões, dizendo: “eu já estive aí”. E, então, só então, aquiescer tranquilo ao cântico das Parcas, embalado no letárgico descanso de Hades com o olhar atravessado de quem atravessou o mundo ou pelo menos tudo fez para lobrigá-lo. Enaltecer na minha biblioteca a mais-valia de um empirismo prático e pragmático, folheando retratos da vida e paisagens da Humanidade, capítulos do mundo nas páginas da minha existência e sorrir, embevecido, ao olhar a palavra pictagórica estampada no livro “eu já estive aí”. Que eu possa então recordar tais momentos contemplados de emoção, sabendo frutificar na memória comprimidos instantes de muitos outros instantes, remédio contra a senilidade e contra a debilidade, revivendo no olhar aquelas horas intensas de vida, coloridas por uma paixão incomensurável de viver, por uma sede fatídica de conhecer os fatos, de amar a vida como se de fugazes instantes se tratassem, destinados a não mais voltarem, a não mais se manterem vivos, amarrados a um passado do qual fazem ou farão parte daí a instantes. Um dia, eu vou morrer. Mas que tenha a certeza de ter vivido, de ter amado, de ter experimentado, de ter errado, de ter passado, de ter gozado, de ter tirado, de ter feito, de ter existido, defeito, imperfeito, mais-que-perfeito, sem jeito ou trejeito... Um dia, eu vou morrer sim, por ter vivido, por ter sentido, por ter ido, por ter voltado, por me ter acabado, por ter começado, por ter recomeçado, por ter perdoado, por ter dado, por ter recebido, por ter falado, por ter conhecido, por ter desconhecido, por ter caído, por me ter levantado, por ter esperado, por não ter chegado, por ter partido... Um dia eu vou morrer por ter vivido.

MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra - Impressões do Mar]

Poema - Totem

TOTEM
 
Clamam por mim,
Como quem chama pelo destino
Que já não vem.
Clamam, loucos, assim
Como se houvesse ato clandestino
Em não ser assim, ninguém.
 
E gritam, como condenados,
Entoando hinos de guerra,
Que as revoluções não passarão,
E morrem, sós e abandonados,
Na inútil luta por uma terra,
Amaldiçoando a sua geração.
 
Doidos morrem sãos, à nascença,
Na alvorada da tempestade
Brandindo os seus ideais,
Invocando a sempiterna presença
Dos deuses que forjam a Humanidade,
Desejando ser meros mortais.
 
Clamam por mim, cavernosos,
Vorazes e intrépidos,
Na sua lânguida vontade doentia
Por se sentirem tão poderosos
Em seus espúrios desejos fétidos
Com que arvoram a sua visão vazia.
 
As suas orações não brotam poder,
Palavras fúteis, corações empedernidos
Que bradam ao céu, impotentes;
Clamam sós ao entardecer
Valores vazios e corrompidos,
Alimentando hipócritas descontentes.
 
Eis que regressam, sedentos,
Das suas guerras de valores
Em questões meramente triviais.
Julgam-se justos, violentos,
Clamam por mim em seus temores,
Achando-se assim velhos imortais.
 
Urge o Tempo em seu fulgor
Sob o manto frio do Universo
Na relíquia intemporal do Espaço;
Ergue-se o lábaro, tingido de dor,
No cântico difuso e disperso
Da marcha do povo, passo a passo.
Orem os povos suas lucubrações,
Cintilem as espadas da vitória
Ensanguentadas pela Lei,
Abençoados pelo curso das religiões
Que apagam a fé da sua memória
No gesto da Justiça e da grei.
 
Jamais se deterão na sua vontade
De querer cumprir o destino,
Arvorar a plenitude do gesto,
Lançando o seu grito de liberdade,
Invocando na fé oculta do divino
O manto sagrado, pio e manifesto.
 
A liberdade é a criação
Que se acha no seio da tempestade,
Que enaltece a História
Saída dos grilhos da escravidão,
Reduzindo a escombros a Humanidade
Na senda da sua triste glória.
 
A mim, nobres gestos de outrora
Que nos livros se acham perfeitos,
Invocando a mitologia dos imortais,
Lavram no solo sagrado que se arvora
Relicários dos mais profundos feitos
Marcados a sangue, universais.
 
A mim esse chão sacro que se pisa
É a lembrança dos que por mim clamam
Quando a memória neles divaga;
Erguem-se quando a Morte por eles desliza,
Indigentes do Destino na contramão,
Olhando, frios, para além da escura fraga.
 
                                                                                     Mariano Mendonça Lopes


Poema - Heróis Vazios

Heróis Vazios

Queria ouvir a tua luz
Bradar ao meu destino
Canções de liberdade.
 
O meu destino é vago e me conduz
Sem brilho, coração felino,
Pela alma da tempestade.
 
Queria sentir a intrepidez
Dos heróis na escuridão
Que anonimamente se escondem,
 
Exaltando a virtude da timidez,
Da bravura cantada na solidão
Que os alvores do dia interrompem.
 
Queria ver a sombra iluminar
A tua vontade estoica,
A tua figura aquilina;
 
A vontade retumbante de lutar
Por uma bandeira heroica
De uma qualquer gesta peregrina.
 
Queria ver o passado se erguer
Altivo sobre os imprevistos do presente
Desfraldando as suas loucuras
No estandarte solene do amanhecer
Em cuja luz a alma sente
O clamor das razões puras
 
De quem deseja a liberdade,
De quem luta por outro porvir,
De quem sabe erguer a espada.
 
Em teus olhos, a tempestade
É um destino ainda por perseguir
No longo anseio da madrugada,
 
Em busca do sol da tarde
Retumbante sobre o monumento
Em torno do qual a fogueira arde.

 
MARIANO MENDONÇA LOPES

 

Prosa


As palavras não precisam ser escritas para serem sentidas, nem precisam ser vividas para serem verdadeiras. Basta serem retratos da alma a que juram fidelidade. Tudo o mais nós mesmos construímos no dia que passa e vai arrastando emoções.

 
As imagens não têm que valer mil palavras para serem atuais, para terem a força de existir e contrariar o pensamento. Para serem imagens, apenas têm que nascer perante nossos olhos em prodígios de ilusão no mesmo filme quotidiano aonde vamos interpretar máscaras de realidade. Mas as imagens não têm o fascínio das palavras que lavram o destino de todos nós no destino de um só, o texto que se inaltera e permanece arrumado nas nossas vidas, nos nossos arquivos. Porque as palavras vivem em nós depois de mortos, enquanto as imagens morrem com os nossos olhos.

 
As palavras trazem os sentimentos no olhar de quem os vive, sentimentos que mergulham intrépidos num oceano de emoções, de ínfimas melancolias que o existir hoje pode deixar no amanhã, como as ondas que vão morrer na praia, arrastando algas e garrafas, madeiras e tesouros. As palavras esculpem sensações em metamorfoses delirantes, em devaneios sombrios, em contemplações vagas, sonhos que não se cumprem ou ambições desmedidas que ultrapassam o horizonte e já se querem instalar no futuro. Sentimos o afeto que perpassa na alma como um texto construído pela força das nossas ideias, pelo vigor dos nossos sentidos. Há almas despertas com o desabrochar resplandecente brotado pelas palavras nos nossos corações, há razões ocultas que o texto insiste em não revelar, palavras que não estão lavradas senão no segredo guardado por cada um de nós no recôndito espaço da sua mente onde as palavras trabalham desenfreadas para buscar um novo sentido à vida entre tantos outros sentidos que se parecem perder no tempo.


E por existirmos, e por lutarmos contra a indiferença do mundo, construímos textos em castelos de palavras, pétreas emoções que o tempo esculpe com o labor meticuloso de quem não tem pressa e procura apenas a perfeição. E no texto assim construído esvoaçam novos sentidos ao sentido original da palavra, novas emoções à comoção desperta pelo sentido da vida, aos olhares circunspectos que miram e contemplam cada uma das nossas interpretações, dos encaminhamentos que o destino dá ao vigor sensorial que as palavras constroem, projetando imagens de vida e de esperança num futuro que, ali parado, é apenas um esqueleto frio, desprovido de qualquer luz ou brilho, aguardando apenas o sopro da vida, o calor da felicidade. E é nesse oceano de intensas vigílias da nossa existência que guardamos maravilhados os sentimentos profundos que vamos transportar com a nossa mente pelo exercício fantástico e maravilhoso que as palavras emprestam ao nosso presente, à nossa condição humana.

[Extraído da minha obra, Impressões do Mar]