Um dia, eu vou morrer,
soçobrado pelos anos acumulados, pelas doenças mal curadas, pelos sintomas mal
sentidos. Mas que fique em mim um álbum intensamente vivido de emoções e
sensações, de experiências inusitadas e de momentos plenamente preenchidos,
vívidas e satisfeitas vontades em conhecer o sempre novo, sempre curioso,
tenazmente corajoso. Que eu possa então regozijar-me pelos instantes sentidos,
passados e vividos, deixados na alvorada das coisas belas e esplendorosas, de
um perfeito conhecimento de fato, por ter estado aqui, por ter amado ali, por
ter conhecido além; que eu possa então arvorar a causa da minha sabedoria,
levantar o padrão dos meus conhecimentos, erguer convicto o lábaro das minhas
opiniões, dizendo: “eu já estive aí”. E, então, só então, aquiescer tranquilo
ao cântico das Parcas, embalado no letárgico descanso de Hades com o olhar
atravessado de quem atravessou o mundo ou pelo menos tudo fez para lobrigá-lo.
Enaltecer na minha biblioteca a mais-valia de um empirismo prático e
pragmático, folheando retratos da vida e paisagens da Humanidade, capítulos do
mundo nas páginas da minha existência e sorrir, embevecido, ao olhar a palavra
pictagórica estampada no livro “eu já estive aí”. Que eu possa então recordar
tais momentos contemplados de emoção, sabendo frutificar na memória comprimidos
instantes de muitos outros instantes, remédio contra a senilidade e contra a
debilidade, revivendo no olhar aquelas horas intensas de vida, coloridas por
uma paixão incomensurável de viver, por uma sede fatídica de conhecer os fatos,
de amar a vida como se de fugazes instantes se tratassem, destinados a não mais
voltarem, a não mais se manterem vivos, amarrados a um passado do qual fazem ou
farão parte daí a instantes. Um dia, eu vou morrer. Mas que tenha a certeza de
ter vivido, de ter amado, de ter experimentado, de ter errado, de ter passado,
de ter gozado, de ter tirado, de ter feito, de ter existido, defeito,
imperfeito, mais-que-perfeito, sem jeito ou trejeito... Um dia, eu vou morrer
sim, por ter vivido, por ter sentido, por ter ido, por ter voltado, por me ter
acabado, por ter começado, por ter recomeçado, por ter perdoado, por ter dado,
por ter recebido, por ter falado, por ter conhecido, por ter desconhecido, por
ter caído, por me ter levantado, por ter esperado, por não ter chegado, por ter
partido... Um dia eu vou morrer por ter vivido.
MARIANO MENDONÇA LOPES
[Extraído da minha obra - Impressões do Mar]
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